A Leonor está connosco no TE-ATO há uns quatro anos. Foi uma descoberta feliz. Conversava-se sobre teatro e alguém nos falou de uma senhora, a residir em Leiria, que tinha feito a sua escola no Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra. Combinámos as apresentações e o convite, quase insistência, não podia ser mais franco: gostávamos muito que viesse trabalhar connosco! E ela aceitou e ficou.
A nossa Companhia enriqueceu-se pelo seu talento, disponibilidade, entrega incondicional e, sobretudo, grande generosidade de que amiúde me socorro quando necessito saber como gerir pessoas, que dela sempre recebo bons conselhos.
A Leonor teve, há dias, um episódio que me autorizou a contar-vos. Foi ao café onde sempre vai e onde sempre encontra os rostos vizinhos e habituais. Eis quando a senhora sua cabeleireira, da mesa ao lado, exibe um jornal e exclama enlevada:
– Já viu, D. Leonor, Leiria vai ter teatro!
– Teatro?… Será que Leiria vai ter uma nova sala de espetáculos?, pensou.
– Sim, teatro! Vem cá um teatro a Leiria. – Insistiu a senhora cabeleireira.
E a nossa Leonor, que nestas situações consegue sempre manter uma atitude compreensiva, lá tentou argumentar:
– Mas olhe que Leiria já tem teatro. Até tem muito e bom teatro. Há Companhias de teatro em Leiria. Se calhar as pessoas é que não sabem ou nem sempre vão ver.
– Qual quê? Não é desse teatro! Este é teatro a sério. Vem de Lisboa!
– E a senhora cabeleireira exibia a página do jornal onde [LER_MAIS] se viam os rostos dos atores em cartaz. E a Leonor, cheia de pedagogia e boa vontade, insistia
– Pois, esses são mesmo muito bons. Mas olhe que devia também ir ver o que se faz por cá.
Aqui a senhora cabeleireira olhou a Leonor com estranheza. Como poderia aquela sua cliente e cliente do café que partilhavam, tão boa senhora afinal, e ainda mais sua cliente fiel, não entender a importância que representava a vinda das celebridades televisivas a esta provinciana cidade?
Como não entendia o êxtase de estar na mesma sala que a divindade do ecrã? Como poderia não vibrar por se saber tão perto, a partilhar do mesmo ar, quiçá receber um olhar pessoal de tão ilustres criaturas? Não se conteve e retorquiu:
– Mas santos da terra não fazem milagres!
Ora toma! Afinal ficámos todos a saber, pela voz de tão sábia senhora, a causa mais recôndita de haver tão poucos frequentadores de alguns excelentes trabalhos que se fazem na nossa cidade e com gente de cá: porque somos da terra!
Posto isto sobra-nos, a nós pobres fazedores das artes do palco, como única solução, irmos pregar para outra freguesia. No entretanto, fica-nos uma dúvida: e onde passará a Leonor a arranjar o cabelo? Em Lisboa?
Deve ser o melhor que tem a fazer. Afinal, santos e cabeleireiras da terra não fazem milagres e uma senhora como a Leonor merece que lhe cuidem do cabelo a preceito, com rigor, qualidade, muito trabalho, dedicação, estudo, tal como fazem as pessoas que, em Leiria, fazem teatro.
*Psicólogo clínico e diretor artístico do TE-ATO
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990