Ambos se deixaram tomar pelo desejo de coleccionar. Não é a diferença de meios de fortuna que os distingue, mas sim o condicionamento que traria às suas vidas. Um sacrificou casa e família à colecção, o outro fez da sua colecção o ambiente enquadrador das suas relações familiares e de amizade.
Sendo ambos coleccionadores, acumularam objectos de determinadas categorias, mas não parece ter recaído sobre um deles a obsessão que moveu o outro.
Refiro-me a José Régio, o coleccionador compulsivo, e a José Relvas, o coleccionador poético. Como se tivessem sido inspirados por um deus truculento, Régio, o coleccionador fetichista dispunha de fontes de rendimento bem mais limitadas do que Relvas, pelo que o sacrifício pessoal que a colecção lhe exigiu não tem equivalente no prazer estético que este último encontrou na aquisição das peças da sua colecção.
A colecção de Régio foi preenchendo a casa, imparavelmente, incluindo compartimentos de intimidade, em luta constante por novos espaços. Relvas dispôs a sua colecção de forma harmoniosa, de modo a caracterizar esteticamente cada sala.
Não é possível imaginar o abastado proprietário de Alpiarça a limpar as peças da sua colecção no desvelo voluptuoso do professor do Liceu de Portalegre para com as suas. Também não há registo de que a venda e troca de peças de colecção, operações correntes de gestão de colecções, se tenham revestido no caso de Relvas do lamentoso remorso a que se refere Régio sempre que se vê na necessidade de se desfazer de alguma das suas.
Resultado de espíritos sistemáticos ou apaixonados, as colecções não passaram de moda. Numa época em que deixámos de fazer ruínas – uma interpretação do Marc Augé – ou melhor, em que substituímos as ruínas pelos escombros, aumentou exponencialmente o numero de colecções, tanto privadas como públicas.
O número de museus não cessa de aumentar e de abarcar áreas da actividade humana que há um século seria impensável musealizar. P [LER_MAIS] ara o antropólogo citado, provavelmente uma atitude deriva exactamente da outra.
Num pouco lembrado texto sobre este tema publicado no vol 1 da Enciclopédia Enaudi, Krzysztoff Pomian defende a hipótese de que a mais importante alteração da vida humana desde o controlo do fogo tenha ocorrido com a emergência da preocupação em guardar ou criar objectos que não são coisas úteis, mas coisas que remetem para o invisível. A primeira versão deste ensaio intitulava-se aliás “Entre o Visível e o Invisível”.
Cito: “Conclui-se que um estudo das colecções e dos coleccionadores não pode fechar-se no quadro conceptual de uma psicologia individual que explica tudo utilizando como referências noções como o «gosto», o «interesse» ou ainda o «prazer estético”.
Os caracteres dos indivíduos, a sua maior ou menor sensibilidade, são importantes apenas na medida em que a organização da sociedade deixa um espaço livre ao jogo das diferenças individuais.
Por isso, antes de nos ocuparmos deste último, é necessário explicitar o modo como a sociedade em questão (ou os grupos que a compõem) traça a fronteira entre o invisível e o visível.”
Docente do Instituto Politécnico de Leiria