A vida toda em slow motion, como se a cada vez que fechas os olhos, não tivesses a certeza de que os podes voltar a abrir. Para quem está de fora, ver-te assim a desistir de vez – e não te tiro razão nenhuma – de cada vez que piscas os olhos, pareces estar a querer confundir ainda mais esta humanidade-pânico. Serás tu ou serei eu a morrer ali?
Ora velhinha, ora bebé. Numa cama, parecemos todos o mesmo. Tinhas uma promessa tácita de viver para sempre. Mas quem te visse ali, a dar o dito por não dito, não imagina uma vida tão cheia de dedo em riste às convicções.
Sabes, avó, a tua geração não é esta. Quem te visse ali, não saberia nunca o que é mandar dois filhos para a guerra. Não sabe o que é perdê-los. Ou ao amor da tua vida. Viver em ditadura e esconder pessoas em casa, pela calada da noite. Ver um irmão preso pela PIDE. Perdê-lo.
As portas sempre abertas para quem tivesse fome e frio. As portas sempre abertas. Não sei em que parte da vida ficaste tão dura. Tão teimosa. Quem te visse ali, não saberia nunca a importância que davas aos caminhos do pinhal. Ao mar. O valor que tem, saber o nome de cada rocha de São Pedro. E saber que Moel se escreve com O e porquê.
Disseste sempre que a tabuada não se conta pelos [LER_MAIS] dedos. Usa a cabeça! Mas até tu, avó, se te visses ali, saberias que nem sempre a cabeça consegue fazer as contas certas à vida. O coração então, coitado, anda por aí feito parvo. Mas ainda bem.
Quem te visse ali, avó, não saberá nunca que nos deste os livros. A cultura. A liberdade de experimentar a vida contra todos os teus avisos. Contra todas as tuas previsões.
A liberdade de partir o coração à James Dean medricas por ter sempre o teu a servir de backup. A medida certa de todas as coisas. Uma tabuada infalível. A família. Sempre a família. Quem te visse ali, não te imaginaria tão rija. Tão forte.
As pernas cansadas, os olhos cegos e, ainda assim, as mãos agarradas a cartas de amor carcomido pelo tempo. Avó, quem te visse ali, não via o teu coração. Desde o dia em que te chamaram Olinda e ficaste, para sempre, avó ‘Linda por defeito. No teu caso, por virtude.
*Realizadora, pessoa criadora de conteúdos