A proximidade está a desaparecer das nossas vidas em vários contextos e na morte também?
Há um distanciamento geral das pessoas e dos profissionais de saúde. Eu falo da experiência: sou enfermeira, mas aprendi a ser pessoa enquanto profissional de saúde. Para nós, profissionais de saúde ou mesmo familiares e afins, estarmos com pessoas com doença crónica e irreversível, na sua vulnerabilidade, e que podem morrer, seja devido à doença ou mesmo ao envelhecimento, é preciso termos estas questões bem trabalhadas, porque há uma fusão daquilo que são os nossos medos, as nossas dores, no outro. Há uma fusão e há um espelhar daquilo que é nosso. Que não tem de ser e na maior parte das vezes não é necessariamente do outro. Temos muito a tendência a fazer isso nas nossas relações. Supomos que sabemos cuidar, que sabemos amar, sem questionar quais são as necessidades do outro e efectivamente aquilo que o outro precisa.
A maioria dos óbitos hoje ocorre em circunstâncias diferentes do passado.
É preciso contextualizar na história o que nos levou até aqui, sem apontar o dedo, sem atribuir culpas. Neste momento, acredito eu, estamos numa fase de encontrar um equilíbrio. Se olharmos para o nosso passado não assim tão distante, as pessoas morriam mais em casa. O hospital devia ser um sítio de recuperação de uma situação aguda. A maior parte das vezes não é isso que se passa e as pessoas acabam depois por andar de instituição em instituição. Por várias razões. Antes, as pessoas estavam mais em casa. Havia uma pessoa, maioritariamente mulher, que estava em casa e que assumia o papel de cuidadora, mas também havia muito descontrolo de sintomas, porque a ciência ainda não conseguia ajudar. A ciência evoluiu e não é normal, hoje, alguém estar com sintomas descontrolados. Não é necessário, de todo. Portanto, antes as pessoas podiam morrer em casa, mas podiam morrer com menos alívio de sintomas. Hoje, é um bocadinho o contrário. As pessoas estão mais no hospital. Às vezes estão em casa, mas os familiares, no momento em que começa a aproximar-se o fim de vida, têm medo. E há o movimento de ir para o hospital.
Em Portugal, há muitas pessoas a morrerem sozinhas?
Sim, nos hospitais, nos lares, sim.
Demasiadas?
Sim, há. Pode não ser, se calhar, a palavra correcta. As pessoas podem morrer sozinhas e tranquilas. É [morrerem] com muita falta de amor, com falta de acompanhamento. E neste processo de grande vulnerabilidade, que é nós vermos o nosso corpo a perder capacidades, e todos os lutos que advêm daí, as pessoas estarem efectivamente sozinhas e a não serem reconhecidas e amadas. Nas fases da nossa vida em que não estamos tão bem, mais tristes ou mais zangados ou mais depressivos, é difícil termos alguém que esteja connosco e não nos queira mudar. É difícil termos alguém que nos acompanhe, nos veja, nos ame, sem nos querer mudar e a mesma coisa se passa no momento de fim de vida, em que há uma transformação que está a ocorrer a vários níveis. E a forma como os outros estão connosco, nos vêem, nos reconhecem, conta. Muito.
O que muda com o acompanhamento por uma doula de fim de vida?
O facto de as pessoas serem vistas, serem escutadas, serem amadas como são. A pessoa, a família, quem quer que seja, quem procure. A doula faz muito este espelho, sem crítica, sem julgamento. A aceitação daquilo que é naquele momento. Não querer mudar as coisas. É muito, também, trazer às pessoas ferramentas que lhes permitem estar nesses momentos em tudo aquilo que elas estejam a viver. Na zanga, na tristeza. Dá-nos espaço para estarmos mais tranquilos com aquilo que estamos a sentir e também nos traz alguma liberdade de ser. A doula pode fazer muito mais, mas o principal é a escuta e a presença. É difícil, também, quando estamos a passar por estes momentos de perda, conseguir olhar para o lado mais amoroso do processo. É mais fácil sentirmo-nos no turbilhão emocional da dor. Ter uma doula ajuda-nos a conseguir respirar, para além deste vórtice, e ver que existe também muito amor.
Quais são as questões que mais frequentemente surgem?
Explicar-lhes o que está a acontecer e trazer paz e tranquilidade. As pessoas não estão habituadas a acompanhar alguém a morrer, é difícil. A morte também é um processo fisiológico. Então, é ajudar a enquadrar. Está com dificuldade a engolir, está com alguma tosse, está a afastar-se daquilo que habitualmente gostava de fazer, está menos comunicativo, está mais a dormir. Nós ajudamos a enquadrar o que está a acontecer e também a perceber algumas coisas que poderão precisar de apoio mais profissional, por um profissional médico, por exemplo.
E há aspectos emocionais.
No momento de fim de vida, poderá não ser a altura para os trabalhar. As doulas não têm de fazer só acompanhamento de pessoas que estão em fim de vida, com uma doença crónica irreversível, [podem] acompanhar alguém que queira trabalhar estas questões com a presença da morte, digamos assim. Quando a pessoa nos procura, logo aí há uma intenção diferente que é colocada. É mesmo muito importante trabalharmos em vida os medos da morte.
A morte deve ser pensada no agora.
Não podemos separar a morte da nossa vida. A morte faz parte da nossa vida. Somos nós que nos levamos para o momento da nossa morte. Com tudo. Com toda a nossa vida, com tudo aquilo que nós somos. É fisiológico, é físico. E sente-se. A forma como o vamos viver vai depender muito da forma como vivemos ao longo da nossa vida.
Alguém resolve iniciar um processo com uma doula de fim de vida. Aonde é que leva esse processo?
Aonde a pessoa quiser ir. Há um campo de conversa que se abre e a pessoa vai falando daquilo que tiver de falar. Não é a mesma coisa que psicologia. Há um campo de confiança que se abre, onde a pessoa tem oportunidade de abrir as suas gavetas. A doula só está lá para escutar. Não é a doula que faz o trabalho, é a pessoa. Há ferramentas que se podem usar, práticas de meditação, depende muito da pessoa, depende muito de até onde ela quer ir. E ao trabalhar-se a ela própria cria um campo de abertura em todas as relações da sua vida.
É mudança? Apaziguamento?
Tem de haver empatia. É um trabalho recíproco e é uma relação que se estabelece. Quando a pessoa dá esse passo, o outro está lá para escutar, sem julgamento, sem crítica. Ajuda a que essa pessoa se veja, porque é a pessoa que traz a culpa, é a pessoa que traz o julgamento, é a pessoa que traz a falta de amor-próprio, é a pessoa que traz o medo. E acha que todo o mundo a vai julgar e criticar porque ela própria se vê assim. Então, a doula o que faz é, num espaço de não julgamento, de não culpa, de abertura, de acolhimento, de amor, espelhar que é uma escolha que ela faz, sentir-se assim. E que pode fazer escolhas diferentes.
Os cuidados paliativos, por si só, não cobrem todo este espectro?
Sou apologista dos cuidados paliativos e tenho a experiência de trabalhar nesta área. Principalmente em meio hospitalar, ver as pessoas que não são acompanhadas em cuidados paliativos e as pessoas que são acompanhadas, são mundos muito diferentes. Em termos de controlo sintomático, é abismal. Agora, não chegam a toda a gente. As equipas são poucas e às vezes não funcionam tão bem, não pelas pessoas que lá estão, mas pelo sistema. E não se investe em cuidados paliativos. Nós andamos, muitas vezes, de patins, a correr de um lado para o outro. Não é a mesma coisa do que estarmos, enquanto doula, uma hora, duas horas, o tempo que for preciso, para aquela pessoa. Focados naquela pessoa. As doulas surgiram de profissionais de saúde, fora de Portugal. Assistentes sociais, médicos, porque sentiram necessidade de criar uma figura diferente, porque, realmente, não conseguem chegar a toda a gente como pessoas, como seres humanos.
Podem fazer parte do papel da doula aspectos muito práticos.
Sim, mesmo em casa. Mais logo vou estar com o pai de um casal amigo, vou lá passar a noite e o dia todo de amanhã. E eles vão passear, vão à vida deles. Posso ajudar também na higiene, nas coisas práticas da casa, no descanso dos cuidadores principais. Cuidar não é fácil. Se estamos sozinhos, é muito difícil. Precisamos de pausas e de intervalos para conseguir estar com o outro.
Estamos destreinados?
Começa desde que nascemos. A prática da escuta activa, escutar as crianças quando fazem “birra”. As crianças não nascem a aprender a lidar com as emoções, elas aprendem com a vida, aprendem com o espelho dos adultos. Quando a criança está a chorar, a fazer birra, e a maior parte dos adultos o que faz é dar uma palmada, repreendê-la, o que a criança aprende é que aquele comportamento é errado. Vamos crescendo e não aprendemos a estar com as emoções. Aprendemos que a raiva, que a tristeza, que a zanga, são coisas más, que não é suposto sentirmos, então, não aprendemos a estar com elas. É uma bola de neve: os pais fazem connosco o que os avós fizeram com eles. Alguém tem de sair e aprender a estar consigo próprio para que as futuras gerações consigam ser amadas naquilo que estão a viver e a sentir sem julgamento. Criar um espaço seguro para a criança se expressar. Ela própria depois vai gerir. A doula o que faz é isso. Muitas vezes, é quase acolher a criança interior do outro, que não foi realmente amado.
Há pouco espaço nas nossas vidas para cuidar do outro?
Para cuidar do outro e principalmente para cuidar de nós. Somos seres duais e nascemos com duas energias. Da acção, de fazer, da descoberta, de estar no mundo e estar activos, mas também nascemos com uma energia mais de contemplação, do parar, do escutar, da intuição, que é a energia do ancião. Precisamos de aprender a parar e a estar connosco. Não sabemos fazer este movimento, que é o movimento das artes, de apreciar a beleza da vida só porque sim. Ouvir música, ouvir a chuva. É muito o movimento natural, da Natureza. É engraçado que não sabemos envelhecer, também. Não somos anciãos, queremos continuamente estar na energia da criança. Fazer, fazer, fazer. Deveria ser um movimento de maior sabedoria, de maior expansão da alma, mas quem é que faz isto? É rara a pessoa mais velha que diga “eu quero ser assim”. As pessoas não sabem viver a sua velhice como pessoas sábias, com valor, com apreço. Porque a sociedade também não o faz. Temos de ser nós a fazer por nós próprios.
A Ana Catarina diz que a morte é uma oportunidade e uma dádiva. Em que sentido?
Trazer a morte à vida é aprender a vivermos mais inteiros. Termos consciência do que é a vida como um todo e qual é o nosso papel enquadrado na vida, nas relações com o todo, não só com pessoas mas com tudo aquilo que nos rodeia. E quando fazemos essa reflexão também nos traz a consciência de quem eu, enquanto unicidade, sou. Às vezes faz-nos sair daquilo que a sociedade nos pede para ser e pode ser um movimento muito difícil e desafiante, de encontrar a nossa unicidade. Este movimento de ir para dentro e perceber o que andamos aqui a fazer como um todo e quem somos. Qual é o espaço que temos de ocupar aqui nesta vida, qual é a nossa missão, função, aqui e agora, o que é que nos cumpre, o que é que nos expande o coração. Acho que é a coisa mais amorosa que podemos fazer por nós e pela vida e pelos outros.
Pode não ser fácil de compatibilizar com as prioridades das sociedades em que vivemos?
A morte é uma vivência, sente-se no corpo. Nós não aprendemos é a estar connosco e com tudo aquilo que somos, com todas as emoções, com tudo o que a vida nos espelha de nós próprios, até com a nossa grandiosidade. Tudo nos espelha na vida. Todas as relações, todas as pessoas nos devolvem quem somos, como somos, e nós temos uma escolha a fazer: queremos isto ou queremos aquilo? É um movimento constante de afinação e de encontro. E vamo-nos alinhando com quem somos. É um trabalho contínuo. E no momento da nossa morte também vamos continuar a fazer esse trabalho, portanto, quanto mais prática e experiência tivermos dele ao longo da nossa vida neste corpo, depois mais suave, mais amoroso, se torna o momento em que tivermos de o largar, com uma maior consciência daquilo que nos está a acontecer.
Escreve que a morte é uma porta para o sagrado.
Somos seres de energia. O sagrado é espiritualidade, o sagrado é corpo, é Natureza, está em todo o lado, independentemente do nome que lhe queiramos dar. O pagão é sagrado, o não religioso é sagrado. É aí que encontramos o amor, que é a nossa unicidade. É importante o auto-conhecimento. É indiferente a forma porque o amor é transversal a tudo e a todos, a forma como se materializa, que vem através de nós, é que pode mudar. Quanto mais experiência ao longo da nossa vida, de trazer esta consciência, mais suave, mais tranquilo pode ser o momento em que estivermos a largar o nosso corpo. Na morte há um canal de parto, também, que temos de atravessar. Também se pode ajudar, ou seja, a energia do local, as pessoas que rodeiam a pessoa, tudo conta.
Muitas pessoas imaginam que a morte é um problema que a ciência vai acabar por resolver, através da técnica. Seremos mais felizes na imortalidade?
Cada um saberá por si. O que posso dizer é que mesmo no processo de imortalidade, vamos pôr assim, a vida é movimento. Não há estaticidade, nós não estamos sempre na mesma, é impossível. Mesmo os robôs enferrujam. O que é que queremos congelar? A nossa forma de ser, a nossa forma de estar? Não é possível, nunca. Haverá sempre transformação. O que posso dizer com certeza é que o movimento da vida é cíclico e é movimento. Se há estaticidade não há vida.