Durante as últimas décadas, Maria Marques, de 77 anos, viveu paredes meias com as ruínas da antiga igreja de Almoster, construída no século XVI nesta freguesia do concelho de Alvaiázere. Depois de anos de abandono – “era um amontado de silvas” – o templo, que sobreviveu à fúria vandalizadora das invasões francesas, a “utilizações indevidas como aviário e armazém”, e a um incêndio, está agora transformado num centro interpretativo e cultural.
Dispõe ainda de um auditório a céu aberto, que ocupa a nave central da igreja, que não tem tecto, e de uma zona de lazer, criada no exterior, na casa onde foi mantida e recuperada uma levada, em tempos usada para rega.
Nascida e criada a escassos metros da antiga Igreja de São Salvador do Mundo, onde sempre viveu, Maria Marques considera que a obra ficou “muito bonita”, mas entende que o espaço se encontra “um pouco” vazio. “Está lindo, mas não tem nada para ver. Ainda se pusessem lá um santinho. Havia muitos na antiga igreja”, diz.
Por seu lado, Abílio Nunes, proprietário de um café e de uma mercearia na aldeia, aplaude, sem reservas, a intervenção, quer pela recuperação de um edifício que dizia “muito” às pessoas da terra, quer pela solução arquitectónica encontrada. “Gosto de ver tal como está. Se já temos uma igreja para as cerimónias religiosas, não fazia sentido fazer outra”, alega o comerciante, com 80 anos.
“Reconstruir como templo era falsear o que restava. Toda a arte sacra, um espólio valioso, foi retirada. Não era correcto replicar a igreja como existia há 60 anos, antes de ser encerrada ao culto”, defende, por sua vez, a museóloga Paula Cassiano, que fez parte do trio responsável pelo projecto de recuperação.
A ela, juntaram- -se a arquitecta paisagista Ana Gonçalves e Paulo Reis Silva, engenheiro que, até Outubro último, presidiu à Junta de Freguesia, entidade proprietária do edifício e que promoveu a sua recuperação.
O objectivo, explica o ex-autarca, passou por dar uma nova vida a lir a torre sineira”. No seu lugar, foram construídos anexos com funções de armazenamento No início dos anos 90, a cooperativa faliu e, em hasta pública, a junta acabou por adquirir o edifício “já em ruínas, mas ainda com telhado”. Este acabou por sucumbir espaço que faz parte da “memória colectiva” da população de Almoster.
Com os trabalhos praticamente concluídos – falta instalar os painéis expositivos, cujos conteúdos estão a cargo de Paula Cassiano –, o local há-de ser colocado ao serviço da cultura, com um programa de actividades regulares. “Queremos que seja um espaço vivo e dinâmico”, afiança a museóloga, adiantado que o centro interpretativo irá abordar a componente religiosa, mas também a paisagem da região, dominada pela oliveira e pelo carvalho cerquinho.
Armazém de cooperativa
Foi nos anos 60 do século passado que Igreja de São Salvador do Mundo ficou sem prática religiosa, com o culto a passar para o novo templo, construído de raiz. Paulo Silva conta que, depois disso, o pároco de então, que “era presidente da cooperativa local ligada à avicultura e apicultura”, decidiu transformar a antiga igreja matriz “numa espécie de armazém e garagem”. Para tal, “mandou desmantelar o altar e demobir a um incêndio, que em 1995 fustigou a aldeia, acelerando o processo de degradação da igreja.
O projecto de requalificação do templo começou a ser pensado no primeiro mandato de Paulo Silva, que chegou à junta em 2009, mas só em 2017 é que ganhou forma com a apresentação de uma candidatura a fundos comunitários, cuja execução está agora a ser concluída. “Salvou-se e valorizou-se o património”, afirma o ex-autarca, com indisfarçável orgulho.
A intervenção na igreja de Almoster é o mais recente exemplo de recuperação de templos que, na região, deixaram de ser espaços de culto e passaram a estar ao serviço da cultura. Foi isso que aconteceu com a Igreja de São Tiago, localizada no coração da vila de Óbidos, que há quase dez anos acolhe uma livraria.
Outro exemplo é o da Igreja da Misericórdia de Leiria, que, depois de vários anos devoluta, foi recuperada, dando lugar ao Centro de Diálogo Intercultural. Promovido pela câmara, a quem a irmandade cedeu a utilização do edifício, este é um projecto de “preservação e interpretação da memória” das distintas comunidades que, ao longo dos séculos, povoaram a região, com destaque para a época medieval e para as presenças muçulmana, cristã e hebraica. Abriu ao público em Julho de 2017 e, no primeiro ano, recebeu mais de 17 mil visitantes. Em 2021, registou cerca de 5.500 entradas.
Há ainda a primitiva igreja matriz de Mira de Aire, no concelho de Porto de Mós, que funciona como centro de exposições. Também a antiga igreja de Albergaria dos Doze, em Pombal, encerrada ao culto desde 1964, foi transformada num espaço cultural, que resultou de obras de restauro promovidas por um grupo de pessoas da freguesia. Há cinco anos, o templo esteve para ser demolido, no âmbito da remodelação do largo da igreja, mas a contestação da população local travou essa intenção.
Mais a sul, no concelho de Peniche, a histórica igreja de São José foi integrada no circuito de visita do Centro Interpretativo de Atouguia da Baleia, abrangendo áreas como a geologia, a paleontologia, a arqueologia e a história.
As recuperações e reutilizações destes templos estão em linha com as recomendações da Igreja Católica. De acordo com as directrizes do Conselho Pontifício da Cultura do Vaticano, contidas no documento Desafectação e Reutilização das Igrejas, publicado em 2018, pede-se que, na reconversão de igrejas desactivadas sejam privilegiados novos destinos religiosos, culturais ou caritativos.
De fora, devem ficar “reutilizações comerciais, com propósitos especulativos, incluindo bares, discotecas e restaurantes”, segundo revelou, então, o jornal Público. O documento aponta também como exemplos a seguir a reconversão de igrejas desactivadas em oficinas artísticas e cantinas para pobres.
Lugar de culto para os amantes de livros
Se em Almoster o processo de reconversão do antigo templo está ainda em fase de conclusão, em Óbidos já passou quase uma década desde que a Igreja de São Tiago passou a ser um lugar de culto para os amantes de livros. Fechado à prática religiosa desde o final do século XX, o templo funcionou depois como auditório, num âmbito de um acordo entre a paróquia e o município.
Era, aliás, essa a função que o espaço tinha quando Telmo Faria assumiu a presidência da câmara, em 2005. Nesse tempo, recorda o ex-autarca, o auditório tinha “pouca utilização” e o edifício apresentava já sinais de degradação. Foi nesse contexto que a câmara começou a “desenhar” um projecto para o local, que passava pela criação da “grande livraria de São Tiago”, numa vila sem qualquer espaço de venda de livros.
Em 2006, o município, em parceria com o então Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR), apresentou, com sucesso, uma candidatura a fundos comunitários. Resolvida a questão financeira, foi necessário ultrapassar uma série de obstáculos até que a livraria abrisse portas, em 2013. “A obra demorou mais do que o previsto. Houve várias peripécias, incluindo a falência do empreiteiro”, relata Telmo Faria.
A intervenção ficou concluída em 2012, em plena crise, “num momento em que estavam a fechar livrarias”. Depois de vários livreiros declinarem o convite para se instalarem no espaço, José Pinho, administrador da Ler Devagar, aceitou concorrer, mas fez uma proposta mais desafiante: criar em Óbidos a primeira cidade do livro em Portugal. Estava lançada a semente do que é hoje o Óbidos Vila Literária, onde a Livraria de Santiago desempenha um papel fundamental.
Mas ainda antes da abertura do espaço, haveria de surgir um outro contratempo. “Com a obra feita, o pároco começou a levantar problemas, alegando que o projecto podia atentar contra o bom nome da Igreja”, conta Telmo Faria, revelando que esta “tensão” seria ultrapassada com a intervenção do então patriarca de Lisboa, o cardeal D. José Policarpo.
“Recuperou-se a igreja, dando-lhe uma nova utilização que se revelou o embrião do Óbidos Vila Literária”, salienta o antigo autarca, referindo ainda o caso da antiga Igreja de São João, localizada no exterior das muralhas, que hoje acolhe o museu paroquial de arte sacra.
No concelho de Porto de Mós, a antiga igreja do Arrimal, está em processo de reconversão em centro comunitário ligado às artes tradicionais. O projecto, a desenvolver pela câmara, pretende travar a degradação do imóvel, devolvendo-o à população.
Em Ourém, o município tenciona também recuperar a antiga capela de São Sebastião (Atouguia) para fins culturais. Para já, a prioridade é proteger o espaço, com a colocação de “uma tela impermeável, apoiada por estrutura simples de madeira”.