Com mais uma produção a caminho do Grande Auditório da Gulbenkian, o musicólogo Paulo Lameiro fala com orgulho do Estabelecimento Prisional de Leiria – Jovens (EPL-J) e de alguém que está actualmente privado da liberdade, a cumprir pena, que é também um talento do beatbox. “Pode não ter carreira, não ter formação e ser um artista de topo naquilo que faz, que é o caso”, assinala. “Vai encerrar o espectáculo com um momento dele que é uma coisa extraordinária, muito poderosa”.
O espectáculo é a ópera original O Tempo (Somos Nós), que coloca reclusos (e não só) a criar e a cantar com profissionais. Tem estreia absoluta aberta ao público no próximo sábado, 4 de Junho, no EPL-J, pelas 10:30 horas, após a ante-estreia, no dia anterior, exclusiva para a população prisional e famílias.
Depois de anos a encenar Mozart na cadeia, é a primeira ópera criada de raiz pelo projecto Ópera na Prisão da SAMP – Sociedade Artística Musical de Pousos.
“Vamos ter uma partitura e um texto que começou por ser uma folha em branco que só tinha duas palavras: porta e viagem”. A história, acrescenta Paulo Lameiro, é “uma versão moderna do Ulisses e da Penélope”, desenvolvida e interpretada por reclusos, familiares, funcionários do EPL-J, um libretista, três compositores, técnicos da SAMP, cantores líricos e músicos da Orquestra Gulbenkian. Quase 150 pessoas.
Outros dois momentos, já este mês, estão marcados para Lisboa, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, dias 16 e 17, ambos às 19 horas. A derradeira apresentação acontece no mês de Novembro, em Leiria, no Teatro José Lúcio da Silva.
A estreia absoluta de um espectáculo original é “a grande novidade” da edição do Ópera na Prisão que termina em 2022, após três anos de trabalho e um ano de ensaios. Mas não a única. Pela primeira vez, o projecto ganha “escala internacional”, destaca Paulo Lameiro, que o coordena em Portugal. Está no consórcio europeu Traction que liga Leiria, Barcelona e Dublin com parceiros tão importantes como a Irish National Opera e o Gran Teatre del Liceu entre nove instituições de vários países relacionadas com as artes, a investigação e a tecnologia.
Para além de “medir e avaliar” o impacto das práticas artísticas e da co-criação como estratégia para a inovação social, neste caso, junto da comunidade prisional em Leiria, da população migrante em Barcelona e do encontro entre a cidade e o campo em Dublin, o Traction proporciona o desenvolvimento de novas ferramentas digitais, incluindo realidade virtual aumentada. É neste contexto que surgem o Co-Creation Space, para partilha de conteúdos, comunicação e colaboração, e o Co-Creation Stage, para ligar artistas de forma remota através da internet e em directo.
No próximo sábado, a ópera encenada por Carlos Antunes é mostrada na tanoaria do EPL-J, sob a direcção do maestro José Eduardo Gomes, com a participação da Orquestra Gulbenkian, dos solistas André Henriques (barítono, interpreta Ulisses), Carla Simões (soprano, faz de Penélope), Inês Constantino (mezzo-soprano) e Frederico Projecto (tenor), dos reclusos e de um coro constituído por jovens do EPL-J, familiares e funcionários. Mas outro grupo de reclusos vai actuar a partir do Pavilhão Mozart, o centro de artes performativas criado pela SAMP no EPL-J. Nos dias 16 e 17 estarão no mesmo local, a contribuir à distância no espectáculo do Grande Auditório da Gulbenkian. Estão ainda previstas intervenções desde Dublin (com referência ao Ulysses de James Joyce) e desde Barcelona (o testemunho real de Aziz, que atravessou o Mediterrâneo de barco desde o Senegal e gere uma empresa social de costura).
Com gente espalhada pelo País, os condicionalismos de uma prisão e os efeitos da pandemia, a construção de O Tempo (Somos Nós) fica como experiência “muito desafiante”, conclui David Ramy, outro dos coordenadores do projecto. “Um processo em conjunto”, com a colaboração “muito activa” da população do EPL-J, a preparar “uma obra complexa”, em linguagem lírica contemporânea, que a torna ainda mais exigente, salienta o músico da SAMP. “O mais desafiante é partir do zero”, porque “Mozart é um colchão confortável”. A ópera em seis actos inclui cinco pontes e pontualmente vai a estéticas mais próximas dos jovens actualmente na cadeia. “Tem a essência do rap”. Para David Ramy, a responsabilidade da parceria com “duas casas de ópera a sério” traz, por outro lado, a oportunidade de partilhar conhecimento. E é “muito importante para Barcelona o know-how que Leiria tem de trabalhar com não profissionais”, realça.
Pela primeira vez a escrever um libreto, o escritor Paulo Kellerman, de Leiria, quis “deitar temporariamente abaixo os muros” e “não fazer distinção entre quem está fora e quem está dentro”. Ou seja, “procurar aquilo que une e liga, o que aproxima apesar das infinitas diferenças que todos temos”, diz ao JORNAL DE LEIRIA. “Para mim, do ponto de vista criativo, é muito importante confrontar o outro, e nesse confronto existe um convite óbvio a que cada espectador se coloque no lugar de quem está em palco, que por um momento veja o mundo através de outro olhar. E que se lembre que todos temos momentos de fuga, de espera, de desistência, de medo, de revolta, de confrontação, de superação. De maldade e bondade”.
Ulisses e Penélope. “Nas personagens daquele que viaja e daquela que espera concentram-se tensões, dúvidas, esperanças, ilusões e angústias que todos os espectadores poderão reconhecer como suas”, lê-se na sinopse.
Na segunda-feira, 6 de Junho, o consórcio Traction reúne- se numa conferência em Lisboa, na Gulbenkian. Um dos objectivos do Ópera na Prisão é a reinserção e a redução da reincidência criminal. Segundo Paulo Lameiro, o projecto português “tem inspirado muito” os parceiros e os investigadores querem perceber o que acontece “quando se implementa em co-criação”. O modelo coloca uma questão de poder: quem decide? “A SAMP há mais de 15 anos que se interroga sobre a ética e o direito de transformar alguém”.
Agora que o Ópera na Prisão – Traction está a chegar ao fim, coloca-se a possibilidade de uma nova edição, durante mais três anos. E tudo começou em 1981, com a SAMP em Vale Judeus a oferecer um concerto ao filho da Ivone, um rapaz da terra que acabava de ser preso. Don Giovanni de Mozart entrou no Estabelecimento Prisional Regional de Leiria, pela primeira vez, em 2004.