O Plano de Recuperação e Resiliência prevê para a área da transição digital uma verba de 2.460 milhões de euros, dos quais 650 milhões para as empresas. Que resultados devem ser esperados da aplicação destes fundos?
Os resultados estão muito dependentes da forma como se vai conseguir agilizar o acesso a estes fundos e como se vai garantir que este dinheiro contribuirá para criar mais negócios, mais empresas e emprego. Quando penso no Horizonte 2020 e noutros programas, penso logo na carga burocrática associada à candidatura. O dinheiro só vem depois e quanto menor for a empresa, maior a necessidade de que ele chegue rapidamente. É muito importante facilitar e apoiar as empresas na candidatura e ter mecanismos que consigam, de forma equilibrada, antecipar o dinheiro. E, claro, garantir que ele está a ser canalizado na direcção certa, nas áreas mais estratégicas. As camadas mais jovens pensam mais no reinvestimento e em fazer crescer as organizações, contribuindo para a sociedade. Há ainda muito que fazer, mas não são processos que se façam de um dia para o outro.
Quais as principais mais-valias da digitalização para as empresas, sabendo-se que temos um tecido empresarial composto sobretudo por micro e pequenas empresas?
A transformação digital é inevitável, não só para aumentar a competitividade das empresas – ao digitalizarem os processos conseguirão fazer mais com menos recursos – mas também porque permite aumentar o mercado a que se tem acesso. Por outro lado, também para reter talento. As gerações mais jovens querem tudo o que esteja relacionado com a área digital. Já nasceram num ambiente completamente digital. Não lhes passa pela cabeça não estarem sempre 100% ligadas.
O tecido empresarial português apresenta um nível de digitalização baixo, médio ou elevado?
Depende daquilo com que compararmos. Em relação aos países nórdicos, é baixo. É muito elevado em comparação com os do hemisfério sul. Se pensarmos em países como França, Alemanha e Inglaterra, está um pouco abaixo em diversas áreas, mas noutras nem tanto. Mas há ainda muito a fazer.
A digitalização das empresas e da economia implica a existência de pessoas dotadas de literacia digital. Temos recursos humanos capacitados nesta área?
Há uma escassez muito grande, que se regista a uma escala global. E a pandemia veio acelerar este processo. Porque mesmo as gerações que valorizavam o contacto pessoal foram forçadas, e passaram a estar habituadas, a fazer as coisas de forma remota. Os recursos na área de IT [information technology] estão disponíveis a partir de qualquer lado. Se antes os profissionais eram procurados localmente, agora podemos ter os melhores disponíveis em qualquer ponto do mundo sem necessidade de deslocação. Isto está a acelerar a escassez de recursos, porque as zonas geográficas que antes estavam protegidas devido à barreira da distância deixaram de estar.
Está a crescer o fenómeno dos chamados nómadas digitais…
Veio acelerar grandemente esse cenário. Agora qualquer recurso está disponível em qualquer local. Se antes uma empresa contratava na sua zona geográfica, ou contratava fora mas pedia para a pessoa se deslocar, agora não. Podemos trabalhar em qualquer lado, e isto veio trazer alguma desigualdade em termos de competitividade. Ou seja, se o nível salarial num determinado país é baixo, uma empresa de um país onde ele é mais alto consegue apresentar propostas muito mais atractivas. Não consigo ainda entender os impactos económicos deste fenómeno na sua globalidade, mas vai criar assimetrias elevadas.
[LER_MAIS] O que pode ser feito para que haja um maior número de profissionais qualificados nestas áreas de IT?
Começar logo numa fase muito inicial do ensino a promover a diversidade, trazendo mais raparigas. Ainda há muitos estereótipos do que é uma área para mulheres e uma área para homens. Há também que trabalhar a neurodiversidade, não colocando de parte determinados perfis que podem fazer a diferença. Por exemplo, pessoas com Síndrome de Asperger são pessoas completamente válidas. Por outro lado, há ainda um desequilíbrio muito grande no acesso às universidades. Ou seja, há áreas que continuam a ter um número de vagas muito elevado para as necessidades do mercado. Há que ajustar as vagas, porque temos muitos jovens a candidatarem-se a cursos que têm uma saída profissional muito baixa. É frustrante para os jovens passarem vários anos a estudar e depois chegarem ao mercado de trabalho e não terem emprego. Há que mudar mentalidades. Temos também de fazer reconversão para as áreas de IT. A Critical já está a trabalhar em duas frentes. Tem activos vários programas de reconversão de jovens e também já colocou em prática programas na área da neurodiversidade.
Os últimos dados da consultora Informa D&B revelam que até Outubro a criação de empresas no sector das TIC cresceu 22% face a 2020 (1,1% em relação a 2019). É uma boa notícia? Terão estas empresas fôlego para resistir aos desafios de um sector tão competitivo?
O maior desafio tem a ver com o facto de o mercado se ter tornado global em termos de acesso aos recursos. Numa fase inicial, uma empresa não consegue, provavelmente, oferecer em termos salariais o mesmo que outras de maior dimensão. Por isso vai ter de trabalhar mais na área de engagement, ou seja, tem de envolver as pessoas no projecto que está a criar. Não conseguindo competir ao nível salarial, pelo menos numa primeira fase, pode competir no que se refere à proximidade às pessoas, com um ambiente de maior conforto, mais familiar. Que a pessoa não seja só um número, como provavelmente acontece nas empresas para as quais se trabalha de forma remota.
As empresas têm de mudar o paradigma de gestão de recursos humanos…
Claro. Actualmente as pessoas são o asset [activo] mais valioso. Sempre foram, isso não mudou, mas é preciso estar cada vez mais próximo delas. Se estivesse agora a entrar no mercado de trabalho, saberia que teria muito mais futuro numa empresa que se preocupa, com a qual contacto directamente, que me vê todos os dias e vê o meu potencial, que tem valores e os demonstra no dia-a-dia, do que numa que está nos Estados Unidos ou na Austrália, que não me conhece e onde provavelmente irei uma vez por ano. No momento de definir progressões de carreira, quem terá progressão mais rápida? Não será certamente quem está fora. Se houver reestruturação e cortes, quem serão as primeiras pessoas identificadas para sair da empresa? Provavelmente quem está no outro canto do mundo. Acho que a proximidade faz a diferença, tratar as pessoas como tratamos a nossa família faz toda a diferença.
Partilha a visão de alguns especialistas de que Portugal pode ser um centro de engenharia na Europa?
Claramente. Acho que já é e pode crescer muito mais. O grande desafio é conseguirmos formar mais profissionais.
A Critical TechWorks, joint venture entre a Critical Software e a BMW, previa recrutar 500 trabalhadores este ano. Conseguiu?
Sim. Neste momento já são mais de 1500 pessoas. Este ano, entre a TechWorks e a Critical já contratámos à volta de 750 pessoas. Conseguimos, mas requer mais esforço da nossa parte do que há uns tempos. Não podemos recrutar da mesma forma que há dois anos. Tivemos de nos adaptar. É esse o desafio: tudo é possível, temos é de nos adaptar.
Em que geografias estão estas pessoas?
Um pouco por todo o lado: Lisboa, Coimbra, Porto, Vila Real, Viseu, Tomar. E ainda na Alemanha e Reino Unido, onde temos dois escritórios fora de Portugal. Agora, com o trabalho remoto, temos pessoas noutras zonas também. Não temos escritório em Leiria, mas temos pessoas de Leiria, também temos de Aveiro, onde não há escritório nosso. Consideramos que as nossas pessoas são responsáveis e acreditamos muito na autonomia. Só assim é que conseguimos crescer. Se não distribuirmos entre todos a responsabilidade não vamos conseguir escalar como empresa. Esse é um pilar da nossa cultura. Neste novo modelo híbrido, o que defendemos é que cada pessoa é responsável, sabe quais as suas actividades em termos pessoais e profissionais e cabe-lhe tomar a decisão sobre quando deve ou não estar nas nossas instalações. Não há uma regra rígida.
A mobilidade eléctrica é uma área com imenso potencial. Estarão as empresas portuguesas capacitadas para o aproveitar?
As empresas estão cada vez mais conscientes disso. Ainda temos algumas limitações que, uma vez ultrapassadas, permitirão fazer muito mais. A crise energética que estamos a passar leva a que estejam ainda mais atentas quanto à importância de usarmos mais fontes renováveis e de sermos mais eficientes.
A área dos dispositivos médicos é uma das áreas em que a Critical Software quer ter uma presença mais vincada. Qual a vossa estratégia nesta matéria?
Uma das divisões da Critical está mais focada no desenvolvimento de software embebido, ou seja, aquele que corre no carro, no comboio, no avião, no satélite ou nos dispositivos médicos. Está lá, é necessário, mas não vemos o interface. Esta divisão percebeu que havia muito potencial nesta área. Os dispositivos médicos são cada vez mais digitais e menos analógicos e há potencial de crescimento, o que levou ao investimento nesta área. No início da pandemia investimos muito neste segmento. A nossa estratégia é crescer, principalmente na Alemanha, através de um processo de fusão com uma empresa já a operar, para sermos mais céleres.
Que investimentos e novos projectos tem a Critical Software previstos para 2022?
Não vamos investir em novos mercados, manter-nos-emos naqueles onde estamos a operar: Portugal, Reino Unido e Alemanha. Numa segunda prioridade, chegar a outros países da Europa e América do Norte. Como tem sido habitual, queremos continuar a crescer na ordem dos dois dígitos, mantendo-nos focados nos negócios do espaço, aviação, ferrovia, dispositivos médicos, defesa, governo, energia, finanças, e-commerce.
Sentem algum tipo de obstáculo no Reino Unido ou na Alemanha por serem uma empresa portuguesa?
Não, mas isso tem muito a ver com o que conseguimos demonstrar. Ou seja, o maior desafio quando se quer entrar numa nova geografia ou numa nova área de negócio é termos como mostrar a nossa experiência. A partir do momento em que temos como mostrar os projectos que fizemos e que outros clientes nos referenciam torna-se tudo mais fácil. Não tem a ver com ser de Portugal ou de outra geografia, tem mais a ver com o facto de se ter, ou não, track record naquele mercado.
Perfil
De estagiária a directora
Natural das Colmeias, concelho de Leiria, Mónica Sobreira é licenciada em engenharia informática. Iniciou a carreira no Instituto Pedro Nunes, em Coimbra, enquanto ainda estudava. Entrou na Critical Software no início de 1999, para fazer o estágio da licenciatura, na área de desenvolvimento de software. Acabou por ficar na empresa e ao longo dos anos passou por várias funções, desde desenvolvimento, liderança técnica, gestão de projectos e de programas e gestão de unidades de negócio. A Critical Software está dividida em três áreas: aeroespacial, ferrovia e dispositivos médicos; energia; finanças e e-commerce. É esta que Mónica Sobreira representa, ocupando o cargo de directora da divisão digital engineering services.