Tinha na boca um vago sabor a pão-de-ló e a fios de ovos – comidos à pressa enquanto ouvia aproximar-se o tilintar festivo do sino – quando o Compasso entrando porta adentro me fez lembrar os passeios enfeitados com flores, os casaquinhos de lã por cima de vestidos sem mangas, as amêndoas de licor em forma de legumes e bebés, o cheiro da seiva das folhas pisadas, e as bolinhas de chocolate envoltas em açúcar.
E o alívio da tristeza, da cor e da contenção dos adultos na Sexta-feira Santa. Terminado o dia e feito o silêncio das vozes para que o relógio de pêndulo reine e faça o passe de mágica que é parecer suspender o Tempo por força de nos fazer ouvir o Tempo passar, hesito entre uma mousse ou mais um café.
Também não me decido, e já lá vão três dias, sobre um assunto para este escrito, enredada em filosofias do chegar e do partir, do significado da pertença, e do ser feliz custe o que custar.
Tramado, quando se tem um prazo cada vez mais minguante e a vida se faz longe da rotina que nos vai mantendo na linha; que por aqui a rotina é outra, feita de uma espécie de sobrevoo à vida toda, a olhar o gigantesco puzzle de peças minúsculas que a tornam como é.
Aqui, é o lugar aonde sempre direi que regresso porque só se pode regressar aonde se pertence, e porque um lugar assim somos afinal nós; mas nós em forma de espaço.
Aqui, é o lugar onde a Lua é verdadeira, é o sítio de aferir o que cresci, é um espaço aberto coberto por uma fina película protectora, compreensiva, luminescente e confortável. Um ninho, portanto.
[LER_MAIS] Permanentemente preparado para todas as possíveis tentativas de voo, aterragens forçadas ou mesmo desastres.
Aqui, é o lugar onde todas as ínfimas, sucessivas e infinitas alterações acontecem a par das minhas, sem demasiadas críticas ou juízos de valor sobre a sua razoabilidade, pertinência ou importância, aceitando-se apenas como factos.
Como os meus pés de galinha e os letreiros luminosos, ou a cada vez maior tendência para resfriados e o desaparecimento da casinha baixa da esquina.
Apeteceu-me afinal um café e depois um passeio em volta do quarteirão a sentir que a noite está tépida em vez de gelada, que ainda não cheira a maresia nem ao que cheira o rio quando o vento sopra de lá – que não terá nome, parece-me, o que é próprio das coisas indefiníveis – mas que cheira a estar aqui.
Há gaivotas no passeio, incrivelmente brancas ao luar, e estranhamente silenciosas, como gatos, e as árvores agigantam-se entre a Lua quase redonda e a sombra curta que derramam no chão onde o som dos meus passos soa como soou no princípio dos meus caminhos todos.
Podia escrever sobre isso, sobre caminhos. E sobre mapas, talvez. E sobre navegação à vista, de certeza. E sobre de que forma o regresso ao ponto de partida nos permite pensar a viagem terminada.
Regressar a nós, para podermos partir outra vez com a certeza de que mais cedo ou mais tarde estaremos de volta.
Levanto-me para endireitar o tapete debaixo da perna da cadeira e lembro-me de como os desenhos da lã já foram ruas e casas e jardins, sob os meus joelhos e os meus dedos.
E por lembrar que o foram e voltaram a sê-lo agora mesmo, e outra vez a mim regresso e me reconheço. Agora, um chá e uma torradinha de folar.