Mesmo um tipo de ouvido duro e sem qualquer formação musical, como é o meu caso, gosta de ouvir música. Faço-o diariamente e sempre que posso. Sobretudo quando me desloco de carro. Música apenas.
Outras vezes acompanhada de voz, que julgo ser outro instrumento. Mas também, e às vezes, apenas vozes que me dizem coisas e que gosto de pensar que são música para os ouvidos, por exemplo, pessoas que falam mas que sabem o que estão a dizer, com quem aprendo e que me ajudam a perceber melhor o mundo e as coisas de que ele é feito.
Por contraponto há vezes em que no rádio do carro se ouvem pessoas que gostam de se ouvir e falam e falam e falam sem dizer nada. Quando isso acontece, ou mudo de estação de rádio ou prefiro escutar músicas do meu agrado e que tenho gravadas.
Mas há um outro tipo de músicas que me encantam: as vozes e os ruídos que compõem a cacofonia da cidade grande. Conversas soltas de gente com quem me cruzo e que permitem saber de pedaços dos seus instantes. Monólogos ao telemóvel onde, por vezes e inadvertidamente, ficamos a saber da intimidade de quem fala ou nos permitimos adivinhar o tipo de relação que mantêm com quem os escuta.
Alguns pregões – que ainda se ouvem na zona baixa de algumas cidades – e são a promessa de um prémio numa fração da lotaria ou quente de umas castanhas tardias que crepitam no assador. Há também a ladainha penitente dos pedintes a par com os discursos exaltados dos loucos que dialogam com ninguém.
E em fundo o aviso agudo de uma ambulância com mil pressas e o som cavo de um avião a fazer-se à pista do aeroporto lá no alto da cidade. Com sorte ainda se ouve o tilintar de aviso do solene guarda-freios a capitanear um elétrico gingão.
Também se ouvem as melodias feitas pelos músicos de rua: um acordeão dolente aqui, mais à frente um saxofone a lembrar outras paragens, uma escaleta a debitar músicas conhecidas, todos eles na expectativa de uma moeda que lhes caia na caixa.
[LER_MAIS] Há também a música estridente das lojas de roupa. Dessas não gosto tanto, parecem mais um ruído que ressalta para a rua e que nos faz correr o risco de tropeçar.
Hoje, na baixa da cidade grande, escutei notas de todo dissonantes. Impressionaram-me. Fiquei por ali a fingir atenções frente a uma montra de chapéus só para poder ouvir melhor e mais tempo.
À porta de um restaurante, àquela hora ainda vazio, estava uma rapariga solene, elegantemente vestida, postura sóbria, com olhos cor de esmeralda. Nas mãos o cardápio aberto à altura do peito. Voz segura e delicada, doce talvez. Declamava a ementa como se fosse a sacerdotisa de um ritual.
Atente o leitor que não se limitava a debitar cada prato, antes enunciava os sabores, os prazeres tentadores de uma degustação adivinhada, promessa de iguarias e êxtase. Receei-me da dureza do meu ouvido e da minha falta de formação musical e parti rua fora.
Não fosse dar-se o caso de me encantar na dissonância de tanta beleza junta e converter-me àquela religião pagã ali tão melodicamente anunciada.
*Psicólogo clínico
Texto escrito de acordo com a nova ortografia