É, no entanto, essencial questionar se todo esse comodismo não terá um preço demasiado alto, que vamos pagando em dolorosas prestações. Criados no ambiente da Guerra Fria, nunca acreditámos que chegaria a hora de a revivermos.
Daniel Goldhagen escreveu um livro polémico, cuja premissa era avaliar a responsabilidade do cidadão alemão, nos tempos do nazismo. Hoje, chutamos para canto o que se passou. É melhor pensarmos que foi tudo um transe colectivo, magia negra que capturou tudo um povo “sem ele o querer”. Apontar o dedo a Trump é fácil.
Ele encarna o pior que a América tem: a mentira, a arrogância, o síndrome do heroísmo salvador, do portador da liberdade. Mas Trump é apenas uma versão exagerada do que muitos americanos pensam e são. Uma grande parte da população está plenamente convencida da limpeza das suas guerras e da perfeição da sua liberdade.
Dizer que estão errados é duro. Todo um sistema de descrédito foi montado. Por entre fake news, vamos esquecendo as mentiras das armas de destruição maciça (pretexto para arrasar com o Iraque); as falsidades da CIA ao correr dos anos; as mortes civis às mãos de uma polícia fora de controlo.
[LER_MAIS] Atacar os desportistas é puro racismo. Não só pela questão da cor da pele, mas porque ataca o mérito. Se para aceder aos lugares cimeiros da empresas e dos partidos, ser preto é, desde logo, uma desvantagem, no desporto isso não acontece.
As características físicas dos afroamericanos desbaratam qualquer competição demonstrando que, num contexto justo, as pessoas podem avançar e alcançar o sonho. O futebol americano ou o basket são disso puras demonstrações dos atletas e chamar aos atletas filhos da puta do púlpito presidencial é negar esse mérito. É bullying e uma ofensa a que ninguém pode ser indiferente.
Junte-se a isso a verdadeira guerra civil entre polícias e negros desarmados; a instrumentalização do povo e celebridades num novo McCartismo contra russos; a perda do direito à saúde para grande parte dos americanos e a convicção de grande parte do povo de que coisas como Hiroshima ou Iraque foram males necessários para salvar o resto do mundo, chegamos a uma fórmula que não é legítima, nem de direita, nem republicana, nem política.
É apenas um fascismo americano, de que não há memória nos tempos modernos. Cabe aos europeus denunciar e combater isso, mesmo que nunca mais nos deixem entrar na Terra Prometida. Se calhar, isso era o melhor que nos pode acontecer.
*Músico