O título que não rima mas é verdade fala do encontro entre gente nova e gente de mais idade que está a despertar a memória colectiva e a colorir o espaço público numa das aldeias mais singulares do concelho da Batalha.
Na Torre há quadras e cantares, muitos deles atribuídos ao poeta popular Manuel Rodrigues Marcelino, há lendas de tesouros romanos e histórias sobre seres arraçados de lobisomem, há a Santa Iria e a crença de que os vizinhos e rivais do Reguengo furtaram a pia dos baptismos e agora há também um grupo de amigos com vontade de documentar todo este património imaterial e usá-lo como estímulo para a criação artística.
No início do ano, Sandra e Diogo mudaram-se para a Torre da Magueixa. Ela é dali, ele vem de fora. Numa parede exterior da moradia que habitam, na Rua do Emigrante, está a primeira intervenção do projecto Aldeia Pintada. Duas figuras humanas em rosa, azul e amarelo num mural com quatro versos a servir de moldura: “Fomos à Barrosinha, juntinhos a passear, o tempo arrefeceu, tivemos de voltar”.
Mais abaixo, encontra-se o segundo episódio da iniciativa, inscrito a preto sobre muro branco na Estrada da Torre, ao longo de 87 metros. Recupera estrofes outrora cantadas pelas resineiras: “O lugarinho da Torre, tem ladeiras a subir, quem lá vai amar amores, vai ao céu e torna a vir; eu hei-de cercar a Torre, com 30 metros de fita, a porta do meu amor, há-de ser a mais bonita”.

O movimento dá os primeiros passos, constrói-se à medida que avança e Sandra Pereira e Diogo Monteiro – que no mundo das artes assina como Tenório – são acompanhados por Mariana Menezes, Eva Arrojado e Filipe Cordeiro, todos com menos de 35 anos e laços de amizade, namoro ou parentesco.
Vídeo, música e instalação
Num momento em que a arte pública é objecto de apropriação pelas autarquias e os murais se transformam em instrumentos de marketing para atrair turistas, a Torre tem algo diferente para mostrar. O projecto chama-se Aldeia Pintada, mas além da pintura contempla o vídeo, a música e a instalação para preservar vivências recolhidas em diálogo com os habitantes.
Ou seja, abre uma ponte entre gerações, com os mais novos a ampliarem a voz dos mais velhos.
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“Para além de presentear as pessoas da terra, este projecto pretende também dar a conhecer melhor o lugar ao forasteiro que por ali passa, valorizando a memória e identidade local ou simplesmente trazer cor à aldeia”, lê-se no perfil da página de Facebook.
Tesouros romanos
E o bairrismo da população tem raízes que o justificam. O historiador Saul António Gomes explica que a associação da Torre ao lugar de nascimento da Santa Iria (século VII) é um “tópico importante para se compreender a cristianização no litoral atlântico” e “a reorganização” do território, num período em que “o culto dos santos viajava com as pessoas”.
Por outro lado, sabe-se que na Torre “apareceram pedras romanas”, um dado arqueológico que, segundo Saul António Gomes, atesta que “existiu ali povoamento ligado a Collipo”.
É o mote para uma frase que Joaquim Pereira, pai de Sandra Pereira, consegue citar de cor: “Entre a Torre da Magueixa e São Sebastião do Freixo a minha fortuna deixo”. Verdade ou mentira, comentam-se “pelo menos dois tesouros enterrados”, avança ao JORNAL DE LEIRIA. “O pai da minha sogra, toda a gente sempre disse que eles encontraram um pote com libras”. E mais recentemente, noutro terreno, consta que os proprietários descobriram “moedas em prata”.

Entre a fantasia e a investigação, o nome Magueixa alimenta interpretações discordantes que tanto se referem a um mágico como sublinham a existência de nascentes, enquanto a designação Torre remete para ponto de vigia e fortificação.
Pobretes mas alegretes
Maria da Conceição Marcelino, uma das seniores já entrevistadas em vídeo para o projecto Aldeia Pintada, é do tempo em que “os divertimentos eram os bailes e os tocadores” e as mulheres da Torre andavam “sempre a cantar, em todos os trabalhos”. E ela, resineira até casar, também. Com as amigas, “de manhã à noite, no campo”. Unidas no sentido do provérbio “pobrete mas alegrete”.

“Toca-me no coração”, confessa ao JORNAL DE LEIRIA, sobre o desfiar de recordações a acontecer por estes dias. O pensamento foge-lhe para os finais de tarde, uma pedra em cada mão, a bater o ritmo no regresso a casa. “As pessoas saíam à rua para nos ouvirem cantar”. Versos que até hoje tem na ponta da língua: “As resineiras da Torre não devem nada a ninguém, se elas cantam, se elas bailam, fazem elas muito bem”.
Sandra Pereira nota que “há uma urgência” na fixação do património imaterial porque se vive na transição de um país para outro. “O feedback tem sido muito positivo”, garante Mariana Menezes e Diogo Monteiro destaca o propósito de realizar algo “com que as pessoas se identificam”.
A terminar, mais um ditado, que voa com o vento: “Na Torre ninguém cheira a mofo”. E os moradores recusam enclausurar-se na escuridão do esquecimento.