Nos dias do núcleo de Leiria da Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral (APPC), as cadelas Lua e Salsa, duas labradoras, são presença obrigatória. Na sessão em que o JORNAL DE LEIRIA se intromete, Lua é a terapeuta de serviço, a auxiliar a psicomotricista Ana Fragoso. Há uma menina de quatro anos no centro dos acontecimentos , que aproveita a objectiva da máquina fotográfica para exibir proeza atrás de proeza. Sempre em interacção com a amiga Lua. Exercícios rápidos com cores, bolas, percursos – e biscoitos de recompensa, claro – que permitem trabalhar a linguagem, a lógica, o raciocínio, a motricidade física, o equilíbrio ou a estimulação sensorial, entre outros ângulos do desenvolvimento.
Dos problemas neurológicos e psicocomo tores mais desafiantes aos medos e desequilíbrios mais comuns, passando pelo autismo, a terapia assistida por animais tem-se revelado uma resposta útil, também em Leiria, onde a terapeuta Ana Fragoso acompanha crianças e jovens há vários anos, em diferentes contextos, com o apoio de cães e cavalos. Um caso que recorda com intensidade também tem como protagonista a cadela Lua, que se tornou a companheira especial de um menino portador de síndrome raro que manifestava pânico de canídeos e depois de algumas sessões acabou a passear a Lua na rua e a dar-lhe comida na mão.
Animais que curam, ou, pelo menos, assumem o papel de co-terapeutas e facilitam momentos positivos na abordagem terapêutica, são, no entanto, raros em Portugal. A associação de referência no sector, a Ânimas, certificou 83 duplas até à data, nem todas no activo. O vazio que resulta da inexistência de legislação específica atrasa a expansão de uma actividade com evidências científicas reportadas em diversos estudos, sobretudo no estrangeiro.
Vários saberes
No núcleo de Leiria da APPC, o programa de terapia assistida por animais coloca a terapeuta Ana Fragoso e as cadelas Lua e Salsa a trabalhar em equipas multidisciplinares que incluem psicologia, terapia ocupacional, fisioterapia e terapia da fala.

Especialista em reabilitação psicomotora e licenciada pela Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, Ana Fragoso identifica na terapia assistida por animais benefícios ao nível da comunicação, do controlo das emoções, da auto-confiança e da interacção com o outro. “O vínculo é a base e é muito mais fácil” ser estabelecido com o patudo do que com o terapeuta, porque o afecto surge naturalmente, explica ao JORNAL DE LEIRIA. O estágio num centro hípico em Lisboa com aulas de equitação terapêutica, no último ano da licenciatura, deu-lhe a conhecer uma abordagem que nunca mais quis abandonar no percurso profissional. “Pude ver que os objectivos colocados eram muito ricos” e “todos os utentes estavam supermotivados”.
Alguns exercícios que utiliza para promover a auto-estima centram-se no controlo da acção e do movimento dos cães através de comandos básicos como sentar ou deitar, o que confere aos utentes da APPCLeiria uma sensação de controlo e realização, num contexto lúdico, em que operam o planeamento de tarefas, a redução da ansiedade e a organização de percursos, por exemplo.
Cães brancos e cavalos dóceis
Quanto aos cães, que são treinados, não há um perfil fechado à partida, mas, segundo Ana Fragoso, “os cães brancos e labradores tendencialmente são mais propícios a terem competências” para co-terapeutas, pelas características da raça e pela reactividade das crianças perante tonalidades mais claras, embora, no final, o factor decisivo, afirma, seja “o temperamento do animal”. Gatos e roedores são usados, mas os mais comuns são os cães e os cavalos.
Na Quinta Vale do Lena, na Azóia, a psicomotricista está integrada no programa de equitação terapêutica, indicado para crianças, jovens e adultos com dificuldades a nível psicomotor, emocional, relacional e de comunicação. E explica as mais-valias no desenvolvimento do equilíbrio e da coordenação motora: “No passo, o movimento é tridimensional e faz com que o cavaleiro quando está lá em cima receba a informação que reproduz a marcha humana”.
Ana Fragoso integra também a equipa da clínica Alcance em Leiria, onde recebe com frequência casos de crianças e adolescentes que manifestam instabilidade no ambiente familiar ou na escola, com agitação motora e dificuldades de autoregulação. Independentemente do contexto, garante que é na terapia assistida por animais que observa resultados mais imediatos: “É aquilo que mais prazer me dá e em que sinto que o meu trabalho faz mais sentido”.
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Brownie, a psicoterapeuta
Sempre que se justifica, a psicóloga clínica Catarina Feliciano faz-se acompanhar pela cadela Brownie nas consultas de psicoterapia no acompanhamento de crianças e adolescentes, no centro de desenvolvimento, saúde e bem-estar Ama-te, em Leiria, numa opção que classifica como “muito gratificante”.

Por vezes, são os próprios pais que procuram uma solução de terapia assistida por animais, depois de percorrerem gabinetes de psicologia e nunca conseguirem que a criança ou jovem colaborasse nos objectivos e se mantivesse motivado. Outras vezes, é a terapeuta que o propõe. “Normalmente, em situações de ansiedade, por causa do efeito calmante que o animal proporciona”, explica, mas também para trabalhar “problemas de comportamento”, que podem estar ligados a uma “carência afectiva”.
Outros casos prendem-se, por exemplo, com perturbações do humor, incluindo depressão, desmotivação, apatia. “Por muito tristes que estejamos, os animais acabam sempre por nos arrancar um sorriso”. E no final, todos levam para casa uma fotografia com o co-terapeuta patudo, como prova de um processo concluído e bem sucedido.
Para Catarina Feliciano, o mais importante “é que as crianças e jovens se sintam bem em contexto de terapia”, porque só assim há condições para progredir. Os animais – desde que se mantenham felizes e naturais na tarefa – constituem uma ajuda preciosa tanto na preparação do terreno como na dinâmica que tem lugar a seguir. “É fantástico ver o que é possível alcançar”, afirma ao JORNAL DE LEIRIA. Pela “componente afectiva” e “aceitação incondicional que proporciona”, a cadela Brownie, uma labradora, “permite acelerar o processo e os ganhos”. Os utentes mostram-se “muito mais tranquilos” e por consequência “mais cooperantes” e “participativos”.
Catarina Feliciano, que fez formação nos Estados Unidos, em Espanha e em Portugal, fala ainda do tempo em que trabalhou com idosos num lar para a terceira idade, em que a terapia assistida por animais tinha como propósito, além de fomentar laços de afecto, “estimular a parte cognitiva”, em especial, “a memória e a linguagem”, mas, também, a mobilidade e a frescura física.
A ciência explica
O que os terapeutas descrevem já se encontra na literatura especializada. “Começa a haver estudos que já validam os benefícios fisiológicos, nomeadamente, a redução de stress e da frequência cardíaca, são as medidas mais referidas na literatura, mas também há estudos no sentido de avaliarem a aliança terapêutica”, confirma Catarina Feliciano. Um estudo divulgado no ano passado no jornal Disability and Rehabilitation indica que a equitação terapêutica tem o potencial de melhorar o alinhamento com as normas da comunidade, da escola e da família, através do desenvolvimento do auto-conceito, enquanto mecanismo que produz mudanças ao nível da participação. Ainda sobre a utilização de cavalos em contexto terapêutico, um relatório da escola de medicina de Ioannina publicada no American Journal of Physical Medicine & Rehabilitation, em 2017, depois de uma análise a vários estudos prévios, conclui pela viabilidade da intervenção em destinatários com perturbações da função motora, de coordenação e equilíbrio, entre outras.
Quanto aos cães, uma investigação de 2018, produzida por especialistas espanhóis e publicada no jornal Sociology and Anthropology, avança que o efeito tranquilizador é especialmente valioso em crianças com défice de atenção, hiperactividade e distúrbios de comportamento.
Outros estudos têm sido realizados e divulgados, numa área em que a investigação está a aumentar.
Saúde e família
Em Óbidos, os cães são utilizados no projecto Amigo Especial, dinamizado pela médica de saúde pública Fátima Pais, que é especialista em medicina familiar e trabalha integrada no agrupamento de centros de saúde (ACES) Oeste Norte. Os destinatários são crianças, jovens e adultos, por vezes referenciados por serviços públicos, como escolas. As actividades estão suspensas desde Março, por força das restrições para controlo da Covid-19, mas o histórico, desde o arranque, em 2016, mostra, segundo Fátima Pais, contributos para a inclusão social e benefícios na promoção da saúde física e mental.
Na origem do Amigo Especial encontra-se o caso de um adolescente que, no contexto de outro projecto, o Familiarmente, também ancorado no ACES Oeste Norte, através do Centro de Saúde de Óbidos, participou em tarefas no canil municipal com o objectivo de melhorar as competências de relacionamento com os pais e a família alargada, numa iniciativa que lhe permitiu aumentar a auto-estima e descobrir capacidades.
Já no projecto Amigo Especial, apoiado pelo Município de Óbidos e pela Missão Continente, mais adolescentes passaram pelo canil e ajudaram a treinar e cuidar dos cães, o que se revelou benéfico para potenciar o cumprimento de regras e procedimentos, entre outros ganhos. Também populares, as caminhadas mensais, com cães do canil, em que participaram utentes do serviço de saúde mental do hospital de Caldas da Rainha, com quadros de ansiedade, fobia ou depressão, inseridos num grupo maior. “Começámos a perceber que era uma actividade muito inclusiva”, refere Fátima Pais, que destaca a “alteração na forma de as pessoas sentirem” e o efeito “tranquilizador” e “apaziguador” que decorre da “interacção mantida com os animais”.
O projecto, que se enquadra “numa abordagem de terapia familiar sistémica”, com aproveitamento de recursos da comunidade “em prol da promoção da saúde”, segundo Fátima Pais, está suspenso, mas não esquecido. A delegada de saúde pública no concelho é a primeira a defender que seja reactivado.