Foi no Governo de José Sócrates, em 2008, que o Magalhães fez a alegria de miúdos e professores. De tons azul e branco, um portátil, pequeno, leve e à prova de choque e líquidos foi distribuído a todos os alunos do 1.º ciclo. Foram cerca de 500 mil computadores, fabricados em Portugal, que entraram nas salas de aulas. Gratuito para os estudantes com o escalão A da acção social, custava 50 euros para os alunos sem apoio.
Treze anos depois, professores e alunos que trabalharam com o famoso computador recordam com saudade esses tempos e defendem que um projecto idêntico deveria voltar a ser adoptado pelo Ministério da Educação, sobretudo, numa sociedade cada vez mais tecnológica.
Noémia Narciso, docente do 1.º ciclo, recorda o projecto, que acredita não ter vingado, porque “nunca foi encarado como uma ferramenta escolar”. Além das questões financeiras que poderão ter levado o Governo de Pedro Passos Coelho a terminar com o projecto, os computadores também “começaram a dar alguns problemas e não havia capacidade de resposta para a sua reparação”.
A docente reforça que o Magalhães teve “muito boa aceitação” pelos alunos e pelos professores, mas “as famílias nunca viram o Magalhães como um material escolar”. Alguns pais assumiram a postura de que ‘eu comprei, logo ninguém me tem de impor regras’, revela. “Na minha escola, o computador ficava na sala de aula. Só ia para casa aos fins-de-semana. Era uma ferramenta escolar e usada pela minha turma. Os miúdos produziam muito material, que depois projectavam para a turma. Faziam pesquisas, escreviam textos, aprenderam a colocar imagens e a criar pastas, onde podiam depois arquivar os trabalhos”, conta.
[LER_MAIS]Admitindo que as aulas poderiam ser, por vezes, mais demoradas e o uso era também “condicionado” pelos conteúdos programáticos, a docente considera que era uma forma de “motivar” os alunos para as aulas.
Lara Jordão, quase a completar 21 anos, tem boas memórias do uso do Magalhães enquanto aluna de uma escola na Marinha Grande. “Lembro-me de fazer todas as composições lá e de jogar no intervalo com os meus colegas. Foi o computador onde fiz a introdução às Tecnologias da Informação e Comunicação [TIC]”, conta. Para a jovem universitária, este projecto marcou uma geração que teve acesso a computadores, pelo que defende que foi uma iniciativa que deveria ser retomada. “Há tantos jogos interactivos que podem facilitar a aprendizagem, além das muitas funcionalidades que as crianças podem aprender. Seria educativo e mais cativante para interiorizar a informação”, salienta.
Também Adriana Silva, 20 anos, fazia “imensos trabalhos” e “muitos powerpoints”. No seu caso, possuía computador em casa, mas entende que foi uma forma de dar acesso aos alunos que não tinham. “Ainda agora com a pandemia se percebeu que não é possível haver alunos sem acesso a computadores. Em muitos casos tem de ser o Estado a financiar para que todos tenham as mesmas oportunidades e possam desenvolver conhecimentos ao nível das TIC”, salienta a estudante do ensino superior, que também aproveitava os intervalos na escola para jogar no Magalhães.
“Não podemos nunca substituir o lápis pela informática, mas assim que as crianças dominam o traço e a caligrafia pode-se trabalhar mais com computadores, sendo mais atractivo para os alunos. É muito diferente dar-lhes uma ficha interactiva do que fazê-la em papel”, exemplifica Noémia Narciso.
A docente acrescenta que “o ensino tradicional está em desuso” e a “escola não pode ser só livro, borracha, afia e caderno”, até porque só estas ferramentas são uma “regressão para alguns alunos que têm muito mais disponível em casa, o que torna depois a escola menos apetecível para estar, sendo encarada como uma obrigação”.
Telma Jordão constata que as escolas não podem virar as costas às novas tecnologias. Mas, para que sejam uma realidade, é preciso o Ministério da Educação criar condições, disponibilizando uma rede mais rápida de internet em todas as escolas e apoio técnico. “Foi uma boa ideia, mas não basta dar computadores. Na altura não havia uma rede de internet nas escolas que permitisse aproveitar o potencial do computador e, agora, a rede não melhorou”, afirma, ao salientar que um dos problemas com que pais e professores se depararam foi com a falta de apoio técnico.
“Quando os computadores avariam ou têm problemas não podem ser os professores a ter de resolver. É preciso que o Ministério da Educação disponibilize um apoio técnico, seja nas escolas ou externo”, acrescenta a docente do 1.º ciclo.
Recuando 13 anos, Telma Jordão recorda que, “talvez por ser uma professora mais nova”, aceitou de forma “fantástica” o projecto do Magalhães. Além das questões financeiras, que a professora acredita que também tiveram influência para pôr fim ao programa, as dificuldades que, sobretudo, os pais sentiram, assim como os problemas técnicos e a lentidão que os computadores foram apresentando, também terão contribuído para a descontinuidade do Magalhães.
“Os pais não dominavam bem os programas. As crianças nem tanto, porque não têm medo de arriscar. São muito curiosas. Mesmo agora, durante a pandemia, a determinado momento, os pais já me diziam que eram eles que faziam tudo e estamos a falar de crianças de 6 anos”, revela.
Durante as suas aulas, a professora usava o Magalhães para trabalhos de grupo, de pesquisa e para transmitir algumas bases de processamento de texto. “Eles faziam powerpoints para depois apresentarem à turma. Tentei que ganhassem alguma autonomia tecnológica e havia o compromisso de poderem jogar no intervalo, quando se portassem bem.”
Quando o Magalhães surgiu, vozes críticas se levantaram de imediato, mas se o projecto não tivesse terminado, possivelmente, alunos e professores estariam apetrechados de computadores e internet e prontamente disponíveis para enfrentar os desafios que a pandemia trouxe às escolas. “A oferta de recursos é sempre muito importante, mas não chega só por si. Seria o mesmo que oferecer centenas de canetas a uma escola e não ter uma ideia do que escrever com elas. Os recursos devem sempre servir um propósito, terem um objectivo para a sua utilização”, adianta David Sousa, vice-presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP).
Constatando que perante a pandemia “as tecnologias fizeram todo o sentido”, o dirigente destaca que o importante nos programas e-escolas e e-escolinhas foram as “ideias e os projectos pedagógicos que se puderam desenvolver recorrendo a essas canetas e livros especiais que a tecnologia faculta”. David Sousa admite que as “redes de internet foram e são um dos grandes problemas e travões de desmotivação ao uso das tecnologias, sendo crucial que as mesmas sejam efectivamente melhoradas”. “Se a a informação, os materiais pedagógicos, a cultura são inacessíveis ao professor, por dificuldades de acesso e de qualidade de sinal, não serve de nada ter o equipamento, até é mais prático usar os meios tradicionais. As escolas continuam a debater-se com redes sofríveis e esbatidas que levam à desmotivação e que continuam a ser a razão preferida até pelos que menos querem usar as tecnologias”, revela.
Se há 13 anos tudo isto fazia sentido, em 2021 faz ainda mais. “Hoje os miúdos já dominam a tecnologia com uma grande facilidade. Tive a prova disso com as aulas à distância. Se uma boa rede de internet fazia falta em 2008, nesta fase limita ainda mais”, constata Telma Jordão, ao referir que o Ministério da Educação está a emprestar computadores a todos os alunos que não tiverem.
“Foi feito o levantamento sobre as necessidades, mas é preciso dotar as escolas de boa rede de internet e de apoio técnico. Não podemos sobrecarregar os professores, nem as famílias podem ser obrigadas a ir gastar dinheiro. Tem de haver recursos”, reforça.
David Sousa concorda que se está a falar de dois momentos diferentes da história da educação, que “é importante não confundir”. “Os programas e-escolas e e-escolinhas foram pensados como forma de trazer progresso pelo uso da tecnologia e enquadravam-se numa época em que se pretendia dar um salto ao nível das tecnologias. Neste momento, a História escreve-se com outros contornos. A pandemia obrigou-nos a recorrer a tudo o que nos permitiu sobreviver e continuar a viver, a comunicar e aprender, e mostrou-nos, ainda que efectivamente já o soubéssemos, que se poderia evitar a estagnação, o isolamento e a solidão se usássemos a tecnologia. Ela tornou-se claramente útil aos olhos de todos, mesmo até para os mais resistentes que se recusavam a usar (ainda restam alguns… esperemos que poucos)”, constata.
Covid-19 desafia TIC
Telma Jordão considera que a tecnologia que hoje é necessária na escola não tem nada a ver com a fase do Magalhães. “A pandemia forçou as coisas, mas os miúdos de hoje já têm uma grande desenvoltura para dominar a tecnologia, que os outros não tinham. Alguns até tinham medo de tocar no computador para não o estragar”, diz.
A pandemia trouxe de novo a discussão da necessidade de domínio na área das TIC, nomeadamente de diferentes plataformas, recursos tecnológicos e informáticos por parte dos professores. Mariana Gaspar, professora do 3.º ciclo em Leiria, constata que “esta nova realidade pôs a nu o fosso sócio-económico dos alunos, mas também uma desigualdade de conhecimentos entre professores, sobretudo para aqueles que não têm um domínio alargado nas novas tecnologias ou que não têm acesso a alguém capaz de os esclarecer ou apoiar a nível informático” para “colmatar as dúvidas que iam surgindo perante as novas experiências e formas de realizar as tarefas”.
Reconhecendo a falta de formação, David Sousa destaca que os docentes “arregaçaram as mangas” e “mostraram que eram capazes”. “Os professores precisam continuamente de formação e manutenção dessa formação, trata-se de um processo inerente à profissão, em muito semelhante ao dos atletas. Não vale a pena pensar que se ganham medalhas por saber a teoria e ter saltado uma ou duas vezes. Se um profissional que usa uma determinada ferramenta não o fizer durante algum tempo vai perder a ‘preparação’. Estes processos são morosos e requerem tempo, tempo esse que os professores cada vez têm menos.”
Mariana Gaspar é exemplo disso. Forçada a dar aulas à distância “em tempo recorde”, rapidamente procurou formação para estar apta a enfrentar esse novo desafio. Lamenta, contudo, que “não haja possibilidade de a oferta ser mais personalizada”. “Somos muitos e com necessidades e graus de conhecimento diferentes. Por vezes, ficamos constrangidos e não queremos expor as nossas fragilidades e falta de conhecimento, ao que acresce ainda as limitações temporais para o cumprimento dos objectivos e programa da referida formação”, diz.
Mas, “quando há vontade de evoluir, consegue-se”. “Em pouco tempo, passei a dominar o moodle, a escola virtual, o teams, o zoom e uma série de outras ferramentas que desconhecia e que nunca tinham sido utilizadas em contexto escolar”, revela.
Olhando para trás, a docente admite que a pandemia foi positiva ao ‘obrigar’ os professores a adquirir “mais e melhores” competências TIC e ainda “destacou a solidariedade” manifestada entre os pares. “Houve colegas que se disponibilizaram para um trabalho colaborativo. Passámos a dispor de métodos de trabalho que não se vão perder. Por exemplo, os trabalhos de casa poderão ser feitos preferencialmente online. Temos as ferramentas, portanto vamos aproveitá-las. Nada será como antes”, constata.
Mariana Gaspar garante que a idade dos docentes não é justificação para não acompanhar a evolução tecnológica, apesar de ser “constante e rápida”. “Esta situação implica uma permanente actualização. Afigura-se como um entrave a resistência à mudança por parte de alguns professores.”
Também Telma Jordão admite que há docentes que simplesmente não quiseram esforçar-se por se actualizar e outros que aceitaram e até procuraram a ajuda dos colegas mais novos e mostraram-se, depois, entusiasmados e felizes com tudo o que conseguiram alcançar com a tecnologia.
Depois da pandemia e de tudo a que os professores, pais e alunos foram obrigados a aprender, David Sousa não sabe se o ensino será diferente, mas acredita que todos estão diferentes. “Percebemos a nossa vulnerabilidade, o valor daquilo que nos era trivial e que até acabávamos por desprezar e menorizar, como as próprias tecnologias. Toda esta inesperada experiência ensinou-nos e nós aprendemos. Como em todos os processos de aprendizagem, uns ouvem, retêm e fixam as aprendizagens, outros retêm alguma coisa e outros há que esquecem de imediato ou até se recusam a ouvir e a aprender. O ensino será então diferente, porque nós, pessoas que vivemos este estranho momento da História, somos irreversivelmente diferentes, logo os processos que iremos vivenciar serão consequentemente diferentes”, acrescenta.
O vice-presidente da ANDAEP admite que, depois de “tanto se aprender” no uso das tecnologias e “no inventar de meios e formas para o manter da comunicação”, está nas mãos dos docentes “a enorme possibilidade de ganhar tempo, de criar um legado e de deixar as bases para uma estrutura de ensino e de aprendizagem que seja à prova de inesperados e que consiga e permita que os processos possam ser autónomos e centrados naquele que quer aprender”.
“Os professores têm, neste momento, a possibilidade de criar esta estrutura de informação e de saber, de torná- la intemporal, mutável e adaptável, permitindo-se a si mesma que evolua muito para além do próprio criador… os professores”, remata.