Os dedos da violinista correm ágeis e esguios pelas cordas de um violino que canta baixinho.
A música aperta o coração e, a seguir, traz-nos o cheiro de palha acabada de cortar num campo, numa viagem no tempo até aos Verões da infância.
Em simultâneo, uma bailarina metamorfoseia-se em delicada borboleta, embalada pelo sopro do violino, que toca o fundo do peito.
Quem assiste a este espectáculo vai-se silenciando, deixando conversas abandonadas a meio de uma sílaba.
A atenção está focada e manda-se calar quem ainda não percebeu a solenidade do momento criado por uma simbiose protagonizada pela música para violino a solo, composta pelo músico da Marinha Grande André Barros, para ser interpretada por Veronika Taraban, e dançada pela bailarina, também natural da Marinha, Joana Inês Santos.
“Chamámos-lhe Dançando com a Solidão”, explica esta última e adianta que o objectivo passa por combater a solidão dos mais velhos, residentes em lares e afastados das famílias, pela situação pandémica.
A bailarina conta que houve uma ligação imediata e forte com os utentes, assim que executou os primeiros passos ao som do solilóquio do violino de Veronika. São cinco temas com quatro minutos cada, num espectáculo de 20 minutos, apresentado em dois lares diferentes por dia.
“Os utentes ficam comovidos e, no final, dizem-me que lhes recordo as netas, que estão no ballet.”
Apesar das omnipresentes máscaras e do rígido distanciamento físico, vibram com as emoções que Joana lhes transmite através da sua linguagem corporal, acompanhada pelas notas saídas da mente criativa de André Barros.
O compositor acredita que a relação entre a dança de Joana e a sua música traz memórias de tempos passados. São essas recordações, aliás, o que pretendeu espoletar quando escreveu a música.
“Como o meu trabalho é, normalmente, algo melancólico, desta vez, quis combater a tristeza revivendo tempos passados felizes ou de juventude”, conta. E André e Joana também já têm recordações bonitas para guardar no coração.
Lembram com especial carinho, Lídia, uma utente de um lar de Aveiro, que lhes veio perguntar quem era o compositor dos sons que tinha acabado de escutar.
Tinha trabalhado na Antena 2 e não estava a reconhecer o autor.
Ou ainda de uma senhora de 96 anos e mente sagaz, em Coimbra, que convenceu Joana a dançar-lhe os Parabéns, ao som do violino de Veronika.
Afinal, era o seu dia de anos e sabia-se lá “quando voltaria a soprar 96 velas?!”
“No final, dizem-nos sempre: ‘venham mais vezes!’”, contam.
Como se dança com a solidão?
“É uma experiência muito gratificante. Dou energia e recebo de volta em dobro”, diz Joana Inês Santos.
[LER_MAIS]Os utentes sentem-se alvo de uma atenção especial e isso quase compensa a ausência dos entes queridos, a quem o acesso lhes foi vedado pelo coronavírus. Mas só quase.
“São pessoas que não estão habituadas a escutar música clássica e a ver dança. É um público singular, num contexto diferente do palco”, avança André Barros.
O facto de o palco variar todos os dias é outra coisa que ajuda a tornar singular cada actuação. É quase como se fosse um site specific, mas com muito improviso.
“Tenho de ser versátil porque os espaços apresentam sempre uma disposição e piso diferentes”, sublinha a bailarina.
Quando André, que se tornou um conhecido compositor de bandas sonoras nos últimos anos, se sentou a criar a música para esta dança, sabia que tinha de apelar às memórias.
Notas delicodoces brotaram-lhe dos dedos e saltaram para as teclas do piano onde costuma compor, parecia saberem que não se destinavam a ser tocadas no alvinegro do teclado, mas que haveriam de encontrar o caminho para os dedos esguios de Veronika Taraban, com quem o músico da Marinha Grande costuma colaborar.
“Compor para violino a solo, tem algumas particularidades. Normalmente, estou habituado a escrever para ensembles e faço-o ao piano, instrumento onde se consegue suster notas e tocar uma melodia por baixo”.
Mas o violino não se deixa convencer a fazer o mesmo. Para concluir a tarefa, teve a ajuda de Veronika, que, sob a sua orientação, adaptou as peças para as cordas e arco, e de Sérgio Varalonga, pianista de Leiria, que as transcreveu para a partitura.
O Dançando com a Solidão é uma iniciativa que resulta do Garantir Cultura, um programa especial de apoio do Ministério da Cultura dirigido a “profissionais liberais” da cultura e, como tal, têm um fim marcadamente social.
André Barros, também produtor do espectáculo, diz que decidiu apresentá-lo em estabelecimentos destinados à terceira idade e fazer uma amostra nacional. Não quis apresentar o trabalho em apenas dois ou três sítios, admite.
“Contactei dois estabelecimentos por distrito e consegui 20 lares, em dez distritos contíguos.”
Embora alguns espaços tenham preferido não acolher esta apresentação pro bono, por preferirem evitar qualquer risco, esta será uma digressão que levará André, Joana e Veronika do Porto a Évora, passando por Leiria e Marinha Grande, ao ritmo de dois lares por dia.
Neste momento, os três estão a apresentar o espectáculo no distrito do Porto.
Os temas musicais que servem de base ao Dançando com a Solidão serão gravados e editados em breve.