Fugiram da guerra, da morte e da violência gratuita. Perderam familiares e meteram-se num barco sem condições à procura de paz e de um futuro para si e para os seus filhos.
Depois de passarem tormentas encontraram, finalmente, um porto seguro na região e assumem que foram adoptados por um novo país. Elogiam a forma como foram recebidos e afirmam que a integração foi plena.
Trabalham, são autónomos financeiramente, dentro do possível, e querem construir um futuro na nova pátria. O próximo passo é obter o cartão de cidadão português.
Tahani Sawsan vive na Batalha com o marido e quatro filhos, dois dos quais já nasceram em Portugal. Na porta ao lado está a família do irmão e ainda a avó. Agora são 15. Uma antiga escola primária em São Mamede acolhe-os.
“A família cresceu e a Câmara vai fazer obras de ampliação”, afirma Liliana Moniz, vereadora do Município da Batalha, que, desde o dia 4 de Abril de 2016, apoia este grupo de palestinianos
“Nunca vou esquecer esse dia. Quando cheguei a Portugal tudo estava calmo. As pessoas foram muito simpáticas. Quero agradecer ao presidente e à vereadora que nos ajudaram muito”, afirma Tahani Sawsan, no seu português com algumas falhas.
O marido está a trabalhar, as crianças mais velhas estudam. Com 12 e 14 anos, os jovens já assumiram o português entre eles, algo que nem sempre agrada à mãe.
“Quero que também falem árabe”, afirma Tahani Sawsan, que, para já, é doméstica, mas ambiciona trabalhar “assim que os mais pequenos forem para a escola”.
O passado desta família é de tristeza e violência.
Alguns familiares morreram, outros saíram da Palestina e da Líbia, onde o irmão de Tahani Sawsan chegou a ser raptado, durante dois dias, por ter um cabeleireiro de homens e “os talibãs quererem homens de barba comprida”, conta.
“Os homens não podiam fumar um cigarro na rua e as mulheres não podiam sequer vestir calças. As escolas estavam fechadas. Só existiam as do Daesh, onde nem leccionavam matemática. Sem emprego, havia muitos roubos e nem sequer havia polícia”, lembra a refugiada.
Muçulmanos de religião, esta família foi recebida duas vezes pelo papa Francisco. Primeiro quando se encontraram no campo de refugiados e depois em Fátima.
“Somos todos iguais. Todos somos pessoas e só existe um Deus”, constata, demonstrando um enorme respeito por qualquer religião. Aliás, completamente contra o fanatismo, Tahani Sawsan proibiu os filhos de irem à escola na Palestina, até porque esse era um lugar de recrutamento para o Daesh.
Assim que tiveram oportunidade pagaram e meteram-se num barco, como tantas vezes nos mostram as imagens que passam na televisão, e fugiram. “Tive muito medo. Tomei um comprimido para dormir na viagem. Sabíamos que se acontecesse alguma coisa ninguém se importaria connosco. Éramos 530 pessoas no barco”, recorda, lamentando ainda o tempo que passou no campo de refugiados, “sem condições”.
Em São Mamede encontrou “paz” e sonha com o futuro dos filhos, que gostaria que pudessem ser engenheiro e médico. Em Portugal, a família já celebrou o casamento do irmão.
Liliana Moniz adianta que a preocupação foi ajudar os oito refugiados iniciais a integrarem-se rapidamente na comunidade. Participaram em festas locais, a idosa passou a frequentar um centro de dia e as crianças foram inscritas na escola.
Seis anos depois, a família já tem vários amigos portugueses e garante que não quer sair de Portugal. “Obrigada”, não se cansa de dizer Tahani Sawsan, que assume que, apesar de tentar aprender a falar português cada vez melhor, não quer esquecer a língua materna, que fala em casa.
A avó afirma em árabe: “quero morrer aqui”, traduz Tahani Sawsan, recordando que a idosa fez a viagem de barco com mais de 80 anos. Voltar para o Médio Oriente está completamente fora de questão. Talvez se for de visita e só quando a guerra acabar.
[LER_MAIS]Região acolheu 93 refugiados desde 2015
Desde 2015, Portugal acolheu mais de 2.800 refugiados, ao abrigo de Programas de Apoio da União Europeia – Reinstalação, Recolocação, Recolocação Ad-hoc – Barcos Humanitários, Recolocação de Menores Estrangeiros Não Acompanhados, Acordo Bilateral Portugal – Grécia.
Das 2.800 pessoas acolhidas, 93 foram recebidas no distrito de Leiria: 76 recolocadas, nacionais da Síria, Iraque e Eritreia, quatro recolocadas Ad-hoc, nacionais do Paquistão, Mali e República da Guiné e ainda 13 menores estrangeiros não acompanhados, nacionais do Paquistão e Afeganistão.
Segundo o gabinete da secretária de Estado para a Integração e as Migrações, Cláudia Pereira, estas 93 pessoas foram acolhidas nos municípios de Caldas da Rainha, Óbidos, Nazaré, Marinha Grande, Alvaiázere, Batalha e Alcobaça, por câmaras municipais e organizações da sociedade civil, através de protocolos de cooperação com o Alto Comissariado para as Migrações, ao abrigo dos quais são atribuídas verbas, correspondentes aos respectivos financiamentos de apoio, pelo período de 18 meses.
“São estas entidades que promovem o acolhimento e integração a nível local, procurando concretizar todas as dimensões que concorrem para o processo de integração e autonomização na sociedade portuguesa, nomeadamente, habitação, aprendizagem da língua portuguesa, acesso à saúde, ao mercado de trabalho, à educação e formação profissional, assim como à sua participação na vida local”, salienta o Governo.
Logo à chegada a Portugal, é entregue a todas as pessoas refugiadas um Guia de Acolhimento, traduzido em cinco línguas, que contém informação diversa, da qual se destacam os principais direitos e deveres em Portugal, acrescenta o gabinete ao JORNAL DE LEIRIA
Nascimento e divórcio
Nidaa Hameed chegou à Marinha Grande, a 17 de Dezembro de 2015, grávida de uma menina. A criança nasceu no Hospital de Santo André em Julho do ano seguinte e é a ‘menina dos olhos’ da iraquiana.
A integração foi rápida e o apoio sente-o desde o primeiro dia. O marido encontrou emprego numa empresa da capital do vidro e Nidaa Hameed trabalha no lar da Santa Casa da Misericórdia.
Há três anos divorciou-se. “O marido não queria ajudar nada. Eu trabalhava sempre e ele saía para passear e beber sozinho. Os homens árabes não são iguais aos da Europa. Não quero isso para mim. É preciso partilhar as tarefas domésticas”, afirma Nidaa Hameed, a viver agora sozinha com a pequena Maria, de 5 anos.
“Não é fácil. Ganho o ordenado mínimo e tenho de pagar renda e todas as outras despesas da casa e com a menina. Não quero que falte nada à minha filha. Posso não ter para mim, mas para ela tenho de arranjar”, desabafa a refugiada, que não tem qualquer apoio social.
Apesar disso, Portugal já é a sua pátria. Não pensa em sair e está grata a todos os que a têm ajudado e apoiado. “Fui visitar uma amiga à Bélgica e não tem nada a ver com Portugal. Gosto mais daqui, as pessoas aqui têm um grande coração e são muito queridas”, realça no seu português com sotaque árabe.
A filha só quer falar português. Nidaa Hameed faz questão de lhe ensinar árabe, embora “ela não queira”.
Nidaa Hameed também chegou à Grécia de barco, depois de ter apanhado um avião do Iraque até à Turquia. Assim que lhe disseram que Portugal estava disponível para a receber pegou no que tinha e viajou até à Marinha Grande.
No Iraque viu a família ser dizimada pelas bombas. “Toda a minha família morreu. Quero ficar em Portugal para sempre. Vai ser uma felicidade quando conseguir tirar o cartão de cidadão”, afirma. As imagens que lhe chegam pela televisão não são agradáveis.
“Não quero voltar nunca mais ao Iraque. Tenho muito medo.” A burocracia não tem sido fácil. Nidaa Hameed não pode ir buscar a certidão de nascimento nem registo criminal ao seu país.
Apesar de ter nascido em Portugal, a filha também não possui cartão de cidadão, porque os pais são iraquianos e também não possuem cidadania portuguesa. “A menina precisará para o ano, quando entrar na escola e não sei como vai ser”, lamenta.
Para a refugiada, Joaquim João Pereira, provedor da Santa Casa da Misericórdia da Marinha Grande tem sido o seu grande apoio. “Tem um enorme coração e ajuda muito. Não só a mim como outras pessoas. Aqui no trabalho também me têm ajudado imenso.”
Apesar de muçulmana, Nidaa Hameed não usa véu nem cumpre o Ramadão. Antes da pandemia frequentava, contudo, a mesquita. “Já não usava burka e aqui sinto-me mais à vontade. No Iraque poderiam baterme se não me cobrisse”, critica.
Sozinha, procura dar a melhor educação à filha, entre uma cultura árabe e europeia. O ex-marido “não quer saber da menina, nem os fins-desemana que o tribunal determinou que ficaria com a filha ele cumpre”. Encontrou uma amiga tunisina, que também tem uma filha pequena, e enquanto as crianças brincam Nidaa Hameed aproveita para manter o árabe activo. “Estou muito feliz por Portugal me ter recebido.”
Exemplo de tolerância
Em Ourém, no apartamento muito perto da Câmara Municipal, há bolos caseiros e café com leite, é dia de festa no calendário muçulmano.
Iman Al-Saadi segura no colo o gato da família, que cobre de mimos, enquanto o filho, Amir Iedani, 29 anos, mostra ao JORNAL DE LEIRIA alguns dos vídeos que costuma publicar no You Tube.
Num deles, aparece com a irmã, Roqeia, numa cena de teatro amador gravada ali mesmo, na sala de estar. Noutro, a protagonista é a cidade do Porto e a edição de imagem segue as regras de um spot promocional para o turista, mas em árabe, com as melhores vistas e os planos mais espectaculares.
Não é a única habilidade que tem para exibir: também está no Tik Tok, toca guitarra – “As mulheres gostam!” – e diz-se engenheiro de som e ex-funcionário da embaixada britânica no Iraque.
Num português ainda longe da perfeição, Amir explica que em Portugal prefere a região norte: Porto, Póvoa de Varzim, Barcelos. Mais perto de Ourém, a praia da Nazaré é outro destino favorito.
Conduz um carro pequeno, antigo e quase sem valor, um Renault cor de sangue, que aponta no parque de estacionamento lá em baixo. Entre risos, bem disposto, como quem troça do próprio destino.
O apartamento é humilde e as perspectivas da família também. Ele trabalha por turnos numa fábrica de cerâmica, dois dias por semana, a irmã, de 19 anos, está a frequentar uma formação de curto prazo vocacionada para o sector do turismo, e a mãe recebe um apoio da Segurança Social, inferior ao salário mínimo, em troca de trabalho numa escola.
Iman, que mesmo sem mesquita perto de casa continua a cumprir o Ramadão e os restantes deveres da fé islâmica, já foi a Fátima a pé, duas vezes. Estão em Portugal desde 2017, fugidos dos conflitos armados e da região de Bassorá.
Entre 2014 e a chegada a Ourém, viveram um longo êxodo, primeiro na Turquia, depois na Grécia. Amir fala do Daesh, do Irão, das milícias e conta que o pai e outra irmã morreram no Iraque, vítimas da guerra.
São as pessoas – “a gente” – que lhe arrancam os maiores elogios durante a conversa com o JORNAL DE LEIRIA sobre o tempo em Portugal, onde já fez amigos de várias nacionalidades.
Sente-se bem acolhido e acredita que os portugueses tratam os muçulmanos (e os estrangeiros) sem racismo ou xenofobia porque carregam uma história de emigração que se prolonga até aos dias de hoje, o que torna Portugal um país mais tolerante do que, por exemplo, a Espanha, a França ou a Alemanha.
E quer ficar. Mesmo com “salários baixos” que desaparecem antes do fim do mês e despesas que esticam mais do que a folha do ordenado.