Acaba de ser eleito presidente da European Respiratory Society. É o primeiro português a ocupar este cargo. Que mais-valias pode trazer para a pneumologia portuguesa?
Esta eleição é um reconhecimento pessoal, mas também do trabalho que a pneumologia portuguesa tem desenvolvido e a sua afirmação a um nível mais global. Esta sociedade europeia tem membros em mais de 160 países e organiza o maior congresso respiratório do mundo. Tem uma capacidade de influência e de criação de rede a um nível global muito grande. Em termos de investigação há muitas possibilidades que se abrem. Constituem-se grupos de trabalho para a criação de guidelinese promovem-setask forcespara criar evidência científica. Criámos recentemente o canal ERS Respiratory Channel, que promove actividades e desenvolvimentos principais mais actuais na área da patologia respiratória.
Uma jovem com fibrose quística apelou para que lhe fosse facultado um medicamento que melhoraria a sua qualidade de vida. Se existem fármacos, por que razão eles não estão disponíveis para a população?
A saúde e a inovação medicamentosa representam um volume muito importante de investimento financeiro para os países. É fundamental que haja um acompanhamento da parte da ciência e da divulgação da evidência científica mais recente para demonstrar o benefício da utilização de determinado medicamento e é útil que os doentes tenham uma voz activa, através de associações que os possam representar, neste tipo de pressão, que às vezes é necessário fazer. Quem decide tem de decidir entre o benefício e o peso financeiro de determinadas decisões, mas é importante que haja esta conjugação de interesses, de preferência em conjunto com cientistas, clínicos e doentes. Se trabalhássemos todos juntos, seguramente que teríamos muito mais impacto junto das indústria farmacêutica, das autoridades do medicamento que regulam este tipo de autorizações e dos decisores políticos.
O SARS-CoV-2 parece estar a ceder finalmente em Portugal. A vacinação em massa vai permitir voltar à normalidade e encarar este coronavírus como o influenza?
Não tenho dúvidas de que o processo de vacinação está a ser decisivo na forma como tem estado a evoluir o perfil de incidência e, sobretudo, de transmissibilidade da doença mesmo face a uma reabertura das actividades. No princípio houve dificuldades várias por hesitação nos critérios de vacinação e também pela escassez de vacinas. Mas, agora, com mais acesso a vacinas e com a fixação de critérios muito bem definidos com aquilo que devem ser as opções principais: idade e grupos de maior risco patológico, estamos a ter o sucesso que se espera. Com este ritmo deveremos chegar ao fim do Verão com, pelo menos, 70% da população vacinada, o que poderá levar à imunidade de grupo, embora seja discutível se será ou não atingida. Não podemos esquecer que temos ameaças, sobretudo, com as novas variantes que podem ser de maior transmissibilidade. Ainda é algo que está em investigação, mas pode haver alguma resistência, pelo menos, em algumas opções vacinais.
Está a referir-se à variante da Índia?
Sobretudo. Essa é a mais preocupante na possibilidade de haver algum tipo de resistência a algumas opções vacinais. Quem desenvolveu [LER_MAIS]estas vacinas também está atento e tem demonstrado a sua capacidade de adaptação àquilo que possam ser novas variantes, que determinem algum grau de resistência às vacinas com a composição actual. Há outros riscos, sobretudo, de algum facilitismo e aligeiramento de cumprimento de regras. Será importante manter as regras até se atingir um volume muito significativo de população vacinada. Neste momento, não há muita pressão nos hospitais e isso é um dos aspectos mais relevantes, porque a população de maior risco está maioritariamente vacinada. O que se pretende é que este vírus se torne endémico ou até sazonal como aconteceu com o influenza. Sabe-se que se vai perdendo alguma imunidade com o tempo, mesmo quem teve a imunidade natural, portanto é possível que possa haver um reforço. Há terapêuticas dirigidas para este vírus que já estão em fase três de ensaios de investigação clínica. Também é natural que daqui a alguns meses haja soluções terapêuticas. O principal problema aqui é que esta foi a primeira pandemia viral não influenza. Não era um vírus que conhecêssemos e para o qual temos medicamentos para tentar resolver a doença mais grave.
Os efeitos secundários da vacina da AstraZeneca converteram-se numa guerra de laboratórios?
Não digo que não tenha havido algum excesso de precaução naquilo que foi divulgado e não poderei dizer mais porque não tenho conhecimento. Qualquer vacina ou medicação, por mais simples que possa parecer, pode desencadear efeitos secundários. Não temos claramente associada a vacinação com a AstraZeneca a um risco maior de desencadeamento de determinados acidentes embólicos. Houve na população vacinada a existência desses eventos embólicos, sobretudo em determinado tipo de doentes, com idades mais baixas, mas também ainda não se identificaram bem os factores de risco que possam estar em causa para ter sucedido esse evento como reacção secundária. A possibilidade das pessoas vacinadas virem a ter um acidente embólico é inferior a um por 100 mil. O risco, mesmo nas pessoas mais jovens, de desenvolver doença [Covid-19] que possa determinar mortalidade é bem maior do que o risco eventual de um acidente embólico. Isto significa que os sistemas de vigilância funcionaram. Nunca houve na história recente da farmacologia medicamentos tão escrutinados, sob o ponto de vista da sua eficácia e da sua segurança, como estas vacinas. Estas vacinas excederam aquilo que é o normal da eficácia da vacinação. A vacinação gripal sazonal tem metade da eficácia das vacinas para este coronavírus. Estas vacinas são extremamente eficazes e seguras e foi por serem tão escrutinadas e com uma vigilância tão apertada que se detectaram estes casos raros, com eventual associação à sua administração, mas que não devem contaminar o processo de adesão à vacinação. Este é o processo mais decisivo para podermos vencer esta pandemia.
Fala-se de sequelas deixadas pelo SARS-CoV-2 nos pulmões de pessoas infectadas. O que já se sabe sobre o impacto do vírus no organismo?
As sequelas são sobretudo de natureza respiratória, cardiovascular, mas também aos níveis neurológico ou sistémicos. O mais frequente é as pessoas manterem tosse, cansaço, fadiga, dificuldade respiratória e falta de ar, porque o aparelho respiratório é aquele que é mais afectado. Há também queixas importantes de taquicardias, arritmias e outras de natureza cardíaca ou até do sistema nervoso central, como dificuldade de concentração ou uma certa desmemoriação. Essas pessoas têm de ser enquadradas num programa de avaliação que passará por estudos da função respiratória, provas de esforço respiratórias e cardíacas e estudos de imagem. Estes doentes devem ser geridos de uma forma organizada para se perceber se podem ou não estar a evoluir para doença sequelar mais grave. A organização pulmonar, depois de toda a inflamação na pneumonia, pode desencadear processos conducentes a uma fibrose pulmonar. Neste momento sabe-se que as sequelas não têm tanto a ver com a gravidade da doença na fase aguda. Mesmo doentes com doença ligeira podem desencadear alterações e sequelas que têm de ser observadas atempadamente.
O SNS tem respostas para estes doentes?
Elas estão a nascer. Temos em desenvolvimento uma consulta para estes doentes e para funcionários do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra. Há uma área que é muito importante ser desenvolvida que é a área da reabilitação para os doentes que muitas vezes ficam com queixas sistémicas de mal-estar, cansaço, dores musculares, fadiga. Deve haver uma consulta base, para depois estes doentes serem orientados para as especialidades respectivas de acordo com aquilo que esteja a evoluir.
Como se explica que pessoas que nunca fumaram nem têm grande contacto com fumadores tenham cancro de pulmão?
Genética. Em 80 a 90%, o cancro do pulmão desenvolve-se em doentes que fumam, mas o restante percentual é de pessoas que não fuma e pode até nem contactar com quem fume. Pode-se relacionar com a exposição ambiental ou em termos ocupacionais. Desde 2019, que a Organização Mundial de Saúde estabeleceu que a poluição ambiental aérea faz parte dos cinco principais factores de risco das principais doenças não transmissíveis, a par do tabaco, do álcool, da inactividade física e da dieta desequilibrada. Estamos longe de conseguir identificar o risco genético para poder até ter alguma atitude preventiva ou manipuladora desse risco. Já se evoluiu bastante em termos moleculares na terapêutica, nem tanto no diagnóstico.
A tuberculose ainda existe em Portugal. Faz sentido pôr fim à vacinação da BCG?
Não temos os níveis de incidência abaixo de dez por 100 mil, mas temos os níveis abaixo de 20 por 100 mil. Isso já nos pode colocar no rankingdos países para o qual a vacinação BCG poderá ser apenas indicada para factores de risco, o que está a acontecer. Evidentemente que estas decisões têm sempre uma base de evidência clínica e científica, neste caso baseada na boa evolução da tuberculose em Portugal, mas também uma base economicista. Existem bolsas, sobretudo nos principais aglomerados populacionais e de população migrante, que traz maior risco, porque vem de áreas com uma prevalência e incidência epidemiológica bem diferente da nossa.
As alterações climáticas e a poluição do ar estão a aumentar as doenças respiratórias e alérgicas?
Não tenho dúvida nenhuma. Uma boa parte da doença respiratória, sobretudo a obstrutiva e intersticial tem muito a ver com essas alterações e com a poluição. Há relações directas, por exemplo, com a asma e com a Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica, com determinado tipo de concentrações de gases, que são mais indiciadores de crises de obstrução brônquica. Mas as alterações climáticas estão também muito na base das pandemias. Criam alterações nos habitats naturais de terminados micro-organismos, que têm de saltar a barreira das espécies. Foi isso que terá acontecido com este coronavírus, que passou do morcego para o homem através de um outro vector que terá sido o pandolim.
Visitou serviço pneumologia de Leiria. O que lhe pareceu?
Estive na inauguração do ambulatório, que tem uma funcionalidade enorme, desde a consulta, à função respiratória, eventual realização de exames mais invasivos de técnicas endoscópicas, que são muito importantes na nossa área, e um recobro muito bem organizado. Tem tido uma dinâmica muito relevante nos últimos tempos não só captando activos e recursos humanos que trazem qualidade e diferenciação, mas também equipando- se com uma boa capacidade e funcionalidade. Tem pessoas altamente diferenciadas e com umaexpertise particular para determinado tipo de técnicas. Por exemplo, o director do serviço, o dr. Salvato Feijó, é dos mais relevantes, se não o mais relevante endoscopista respiratório português. Há uma organização que cria condições para um funcionamento muito agilizado e equilibrado, sobretudo no apoio ao ambulatório. É muito importante a dinâmica e energia do serviço, mas também o apoio institucional. Pelo peso da patologia respiratória actual, o conselho de administração viu estrategicamente esta área como muito importante para investir, mas também é muito importante o apoio do mecenato, que muitas vezes não é possível em todas as realidades geográficas. Em Leiria é uma realidade que vem em benefício das condições para a realização de cuidados de saúde.
Pioneiro na pneumologia
Ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia e director da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Carlos Robalo Cordeiro foi recentemente eleito presidente da European Respiratory Society, a maior sociedade científica europeia dedicada à investigação e formação na área das patologias respiratórias. É o primeiro pneumologista português a ocupar este cargo.