A pandemia mudou a vida dos portugueses, é um facto. E mudou- a ao ponto de estar a afectar até o seu sono. Se para alguns o confinamento significou deixar para trás o stress diário associado ao levantar cedo, preparar e levar os filhos à escola e enfrentar longas filas de trânsito para chegar ao trabalho, para muitos outros, a Covid- 19 fez aumentar as preocupações financeiras, o medo de perder o emprego e a insegurança quanto ao futuro.
Em muitos casos, o vírus forçou ainda mais o sedentarismo, a utilização excessiva de computadores e telemóveis, para trabalhar, para estudar e até para socializar, alterando assim as rotinas de descanso de muitos portugueses, que passaram a deitar-se e a levantar-se mais tarde. Além disso, para parte da população, a perda de rendimentos contribuiu para um decréscimo da qualidade da sua alimentação.
Algumas destas condições já estão a piorar a qualidade do sono dos portugueses, mas, alertam os especialistas, a dimensão exacta dos estragos no descanso e na saúde ainda está por aferir.
Se já dormiam mal, passaram a dormir pior
Cláudia Santos é pneumologista e responsável pelo Laboratório do Sono, integrado no serviço de Pneumologia do Centro Hospitalar de Leiria, onde todos os dias chegam pacientes com diferentes doenças associadas ao sono. Mesmo antes do aparecimento da Covid-19, os portugueses já tinham muitos problemas de saúde relacionados com o sono, explica a médica.
Estudos anteriores à pandemia indicam que cerca de metade da nossa população não dorme bem e tem problemas de sono que vão desde o simples ressonar, passando pela insónia, pelos distúrbios respiratórios do sono, entre outros. “Uma percentagem significativa dos portugueses, cerca de um quinto da população, tem dificuldade em iniciar o sono. O que contribui para que haja no País um grande consumo de ansiolíticos e de hipnóticos, para colmatar a dificuldade em adormecer e em manter o sono”, justifica Cláudia Santos.
“A juntar a todas estas perturbações, muitas pessoas têm também maus hábitos de higiene do sono, como a utilização de dispositivos electrónicos ao deitar”, realça a especialista. “Por isso, embora não haja conclusões oficiais, já que algumas pesquisas ainda estão em curso, acredito que as conclusões futuras serão muito interessantes. Vai ser interessante perceber quanto é que o teletrabalho e as aulas online vão perturbar ainda mais o sono da nossa população, não só a adulta, mas também a infantil e a adolescente”, aponta Cláudia Santos.
“Porque a utilização de dispositivos móveis ao deitar é algo que nós tentamos contrariar, mas que actualmente, face ao número de aulas online, empurram erradamente muitas vezes os trabalhos de casa para horas tardias”, prossegue a pneumologista. Acresce que, para jovens e para menos jovens, o online passou por estes dias a ser a única forma de socialização, frisa Cláudia Santos.
“Portanto, só daqui a algum tempo iremos perceber a dimensão deste impacto no sono dos portugueses”, conclui.
Existem, contudo, várias transformações que a especialista já tem vindo a observar nos pacientes do Laboratório do Sono. “Nas nossas consultas verificamos que, de modo geral, as pessoas aumentaram as suas preocupações. Estão preocupadas quanto ao futuro, por exemplo se vão conservar ou não o emprego. E verificamos aumento de insónia [LER_MAIS]e diminuição de horas de sono, porque as pessoas acabam por passar mais tempo a pensar naquilo que as preocupa. Além disso, o confinamento tem implicações na diminuição da exposição solar, com consequente diminuição da vitamina D, conduzindo também ao aumento de insónia”, salienta a responsável.
O risco acrescido de trabalhar por turnos
A vida de Gonçalo Lopes, de Leiria, mudou há oito anos, quando passou a trabalhar por turnos, como operário fabril. Sempre que chega a casa de manhã, depois de uma jornada de trabalho, não consegue adormecer. Além de chegar a casa agitado, ainda com o ruído da fábrica a ressoar na cabeça, tem dificuldade em adormecer com a luz do dia, e de se manter adormecido, especialmente quando o confinamento mantém os filhos pequenos por casa.
“Refugio-me no exercício físico, que pratico com regularidade, que me ajuda a relaxar o corpo e o espírito, mas mesmo assim é difícil aguentar”, confidencia Gonçalo. Ainda antes de completar 40 anos, e depois de meses a dormir pouco e mal, o operário rendeu-se às evidências e procurou o médico da fábrica. “Ele está muito habituado a queixas associadas ao sono. Muita gente que trabalha comigo padece do mesmo”, relata Gonçalo.
“Recomendou-me um anti-depressivo, um calmante e medicação para dormir. Hoje em dia só tomo, e pontualmente, medicamento para dormir”, prossegue o operário. “Já sei que, em fases piores, se ficar muitos dias a dormir pouco, vai voltar o mau humor, o cansaço e a falta de concentração”, explica Gonçalo Lopes, que reconhece a grande capacidade de compreensão da companheira.
“Na minha fábrica há uma taxa enorme de pessoas divorciadas. Não é fácil equilibrar a vida pessoal quando se trabalha por turnos”, justifica.
A responsável pelo Laboratório do Sono do CLH frisa que “os profissionais que trabalham por turnos são sempre muito afectados pelos problemas do sono. “Com alterações do ritmo circadiano, têm mais frequentemente insónias, sonolência diurna excessiva, fadiga, cefaleias, dificuldades de concentração, o que tem grande impacto na qualidade de vida da pessoa”.
“O trabalho por turnos tem também implicações ao nível da obesidade e da diabetes, das doenças cardiovasculares, não só pelos horários incertos das refeições, mas também pelo próprio trabalho por turnos, o que afecta o sono”, expõe a médica.
“As doenças do sono afectam muitos operários, mas também os profissionais de saúde, motoristas que conduzem durante a noite, entre outros”, especifica Cláudia Santos.
Atenção! Há sinais de alerta!
Há um conjunto de sinais e sintomas a que as pessoas deverão estar atentas, e que podem auxiliar no diagnóstico precoce das patologias do sono, explica a pneumologista Cláudia Santos. E estes sinais devem ser reportados o quanto antes ao médico de família, para que se chegue ao diagnóstico com a maior brevidade possível e seja iniciado o tratamento adequado.
Eis alguns deles: ressonar (neste caso, o relato do(a) companheiro(a) é muito importante), existência de paragens respiratórias durante o sono; dificuldade em adormecer; sonhos “vividos”; sensação de asfixia nocturna; despertares nocturnos frequentes; sonolência diurna excessiva; acordar cansado pela manhã; cefaleias matinais; falta de concentração no dia-a-dia; alterações ao nível da memória.
É importante perceber que a patologia do sono é mais frequente em pessoas obesas e, na nossa sociedade, em que a obesidade se apresenta ela própria como uma epidemia, verifica-se um crescimento acentuado da problemática de distúrbios do sono, frisa Cláudia Santos.
“A patologia do sono, nomeadamente a apneia do sono, é factor de risco para várias comorbilidades, nomeadamente cardiovasculares, como a hipertensão, o enfarte do miocárdio, o AVC, arritmias, mas também para doenças metabólicas como a diabetes e, muito importante também, factor de risco para acidentes de viação”, prossegue a especialista.
Por todos estes motivos, defende, “é essencial que o médico de família encaminhe atempadamente os doentes suspeitos para consulta de especialidade”.
Laboratório do Sono inaugura mais uma resposta em Abril
Rui Oliveira, de 76 anos, inaugurou o Laboratório do Sono do CHL em 2016. Depois de anos a dormir mal, foi ali que, “bendita a hora”, lhe diagnosticaram apneia do sono e começou a ser acompanhado por “profissionais de grande humanidade e dedicação”. “Aprendi a usar um aparelho durante a noite e passei a dormir bem” , expõe o profissional de seguros de Leiria.
“A minha mulher dizia que eu até parava de respirar durante a noite”, lembra Rui Oliveira, supondo que ter sido fumador durante 50 anos, chegando a consumir três maços de tabaco por dia, terá contribuído para a sua doença.
Para evitar complicações desta natureza, Cláudia Carvalho, uma das quatro técnicas de cardiopneumologia que trabalham neste laboratório, recomenda precisamente uma boa higiene de sono, com horários regulares para deitar, dormir no mínimo sete a oito horas, fazer exercício físico regular, evitar uso de dispositivos electrónicos na hora de dormir e evitar tabaco e álcool.
A especialista salienta ainda que uma boa alimentação é muito importante para ter boas noites de sono. E nesta matéria teme que, com menos rendimentos e maior sedentariedade, em tempo de pandemia, os portugueses passem a optar por alimentos mais baratos, mas também mais nocivos para a saúde e para o repouso. “A apneia obstrutiva do sono é a patologia do sono mais frequente e que tem grande impacto, porque está associada a morbilidade cardiovascular. E é a que mais detectamos”, nota a técnica.
Um estudo do Plano Nacional de Doenças Respiratórias, de 2014, considera que a taxa de prevalência da apneia do sono grave é de 20% entre os portugueses, mas acredita-se que o número poderá estar até subestimado, frisa a técnica. Laboratórios como este do CHL são constituídos por vários níveis de estudos do sono. E o paciente Rui Oliveira inaugurou, à época, a Polissonografia nível I, conta Cláudia Carvalho.
Neste nível, que possibilita obter bastantes canais de avaliação, o estudo inclui electroencefalograma e implica a vigilância de um técnico durante o sono do paciente, em meio hospitalar. Contudo, devido à escassez de recursos humanos, este tipo de estudo deixou entretanto de ser feito no CHL, refere a especialista.
Tem-se mantido a Polissonografia nível III, um estudo cardiorespiratório, que é feito com recurso a um aparelho requisitado no hospital, e que é realizado em casa.
E, a partir de Abril, o CHL vai inaugurar a Polissonografia nível II. Trata- se de um estudo muito semelhante à Polissonografia nível I, mas que pode ser realizado no domicílio, explica a técnica. Com mais canais de avaliação, permitirá detectar mais tipos de patologias, além da apneia. Para finalizar, remata a técnica, “é importante salientar que a patologia do sono é variada, subdiagnosticada e tem um impacto significativo na qualidade de vida das pessoas, pelas implicações cardiovasculares, por risco de outras patologias e também por risco de acidentes de viação”.
Além disso, “constitui actualmente mais de metade dos pedidos de consulta de pneumologia no CH Leiria”. “Deixa-se o alerta para a população estar atenta aos sinais e sintomas, controlar os factores de risco, nomeadamente a obesidade, ter uma boa higiene do sono, aprender a valorizar o seu sono e a entendê-lo como uma parte fundamental da vida”, termina a especialista.
Teresa Paiva, neurologista e especialista na área do sono
“As classes socioeconómicas mais baixas dormem pior”
Como a equipa do Centro de Electroencefalografia e Neurofisiologia Clínica tem vindo a coordenar inquéritos que visam apurar o impacto da Covid-19 no sono, na saúde, nos hábitos e nos comportamentos dos portugueses. Que efeitos sobre o sono já foram conhecidos?
Na primeira fase da pandemia, cerca de 50% dos portugueses ficaram com o sono igual ou melhor. E outros 50% ficaram com o sono pior. Houve muitas pessoas que ficaram com melhor sono depois da pandemia, porque ficaram com menos stress. Porque muitos factores de stress que existiam antes desapareceram. É evidente que, com o prolongar da pandemia – e estamos a fazer um segundo survey – as coisas terão ficado diferentes. Nesta terceira fase da pandemia ainda não há dados. Estamos a lançar um inquérito anónimo, em https://www. surveylegend. com/s/32j2, e o objectivo é precisamente apurar os efeitos da Covid-19 durante a terceira vaga de pandemia. Teremos dados em breve. Mas nota-se que, em confinamento, muitas pessoas têm menos stress, porque não têm filas de trânsito de manhã, não têm a obrigatoriedade de se levantar muito cedo, preparar os filhos e levá-los à escola, nem têm mais filas para chegar ao trabalho, nem as imensas responsabilidades no local de trabalho, nem têm de fazer o mesmo trajecto com as mesmas filas de volta a casa. Tudo isso gera imenso stress. Portanto, muitos têm tido menos stress durante a pandemia. Quem mora em Leiria tem menos filas do que em Lisboa. Mas, nas grandes cidades, este é um problema enorme.
Até antes da pandemia, já se tinha concluído que grande parte da população portuguesa dormia mal.
Os portugueses têm uma taxa muito elevada de privação de sono. Mesmo antes de tudo isto, cerca de 20% dos portugueses tinha privação de sono, o que é uma taxa muito elevada. E há ainda taxas elevadas de incidência de insónia, de apneia e de outras doenças, o que não é irrelevante.
Além do stress, o que mais influencia o sono?
O stress influencia negativamente o sono e a saúde. As pessoas com mais stress dormem pior e têm mais tendência para ter pior qualidade de sono, ter mais insónias, têm maior risco de doenças cardiovasculares e têm maiores riscos de depressão. Portanto, a moderação do stress é essencial. E muitas pessoas têm stress desnecessário. Ou porque eles próprios o introduzem na vida ou porque no trabalho lhes introduzem stresses desnecessários. Portanto, stress é com certeza uma causa de má qualidade do sono e de insónia. Depois, há também a irregularidade de horários. Uma das coisas que está a acontecer na pandemia é que as pessoas estão a ficar com horários mais tardios. E os horários tardios são perigosos, porque a pessoa começa a deitar-se mais tarde e aquilo resvala. Começa a deitar-se mais tarde, a dormir mais tarde e, em vez de se deitar à meia noite ou à uma da manhã, passa a deitar-se às duas, três ou quatro. E as redes sociais levam também a que as pessoas fiquem à frente do computador ou a usar o telemóvel até altas horas da noite. E os adolescentes também. É um perigo para o sono e para a saúde. Os horários regulares de deitar, de dormir e de se alimentar são muito importantes.
Outro factor importante é a alimentação.
Sim. Nós fizemos esse estudo e as pessoas que se alimentam melhor têm melhor qualidade do sono e melhor compliance em relação à pandemia. A qualidade da alimentação é muito importante e tem de ser tida em conta. E há que fazer exercício físico, principalmente da parte da manhã ou da parte da tarde. Nunca à noite. É muito importante para a qualidade do sono, para a qualidade da saúde e para a qualidade do humor. Bem como apanhar luz do sol. Estar ao ar livre é também muito importante. Nós estamos feitos para ser regulados pela luz do sol. Portanto, devemos regularmente estar ao livre e apanhar luz do sol, principalmente no período da manhã. A electricidade não substitui a nossa necessidade de exposição à luz solar. Depois disto tudo, outro grande influenciador é o trabalho. Uma pessoa não deve trabalhar nem de mais nem de menos. Não deve ter uma actividade cognitiva nem excessiva nem muito baixa, porque o grande beneficiário do sono é o cérebro. E não usar o cérebro faz muito mal e usá-lo em demasia faz mal também. Nota-se com as pessoas nos lares de idosos, que não têm nada para fazer, pelo que o cérebro está forçosamente pior. E temos também as emoções, os acontecimentos negativos que influenciam muito o sono.
Qual é um tempo mínimo de sono recomendado?
Depende da idade e varia de pessoa para pessoa, mas há limites mínimos para cada idade. Por exemplo, se um adulto dormir menos de cinco horas é muito perigoso. Um adulto não deve dormir menos de seis. Mas o normal é dormir sete a oito horas. E as crianças devem dormir muito mais. E até aos quatro primeiros anos de vida, devem dormir a sesta.
Que impactos tem a privação crónica de sono?
Uma noite mal dormida não faz mal a ninguém. Nem duas, três ou quatro noites mal dormidas. Nós somos altamente adaptáveis e podemos bem não dormir uma noite, que não tem importância nenhuma. Ninguém morre por isso. Mas quem tenha privação crónica de sono tem risco aumentado de ter determinadas doenças como hipertensão arterial, doença cardiovascular, diabetes, obesidade, insónia, cancro, Alzheimer, acidentes e morte mais precoce. Privação de sono é dormir cronicamente menos do que é necessário. Fazer disso estilo de vida. Uma pessoa que precise de dormir oito horas e durma sempre seis está a fazer privação crónica de sono. E a gente sabe que faz privação crónica de sono se chega ao fim-de-semana e se dorme mais. Privação do sono é um problema sério, porque afecta cerca de 20% da população. Além desta, há outras doenças do sono, que têm cada uma delas os seus riscos. Por exemplo, a apneia do sono, com riscos cardiovasculares, diabetes, alterações cognitivas, sonolência, acidentes. E há quem tenha insónia, pessoas que querem dormir e não são capazes – o que é diferente da privação do sono – que também têm riscos cardiovasculares, riscos de menor longevidade, de acidentes, riscos de consumos e etc.
Quem trabalha por turnos, como é o caso de muitos operários, em unidades de laboração continua na nossa região, sofre muitas vezes da privação contínua de sono que mencionou.
Sim. E têm um aumento do risco de insónia, de depressão, de diabetes, de doença cardiovascular, de cancro e de acidentes. E na vida particular, salienta-se o aumento da taxa de divórcios e de consumos, seja álcool, tabaco ou drogas.
E há diferenças no sono entre as diferentes classes sociais?
As classes socioeconómicas mais baixas dormem pior do que as classes socioeconómicas mais altas.
E como se sonha durante a pandemia?
Há mais pessoas com pesadelos e há mais pessoas com sonhos. E isso tem a ver com várias condições. Uma delas é o facto de se levantarem mais tarde e de dormirem mais durante o período da manhã. Mas também tem a ver com a depressão e com a ansiedade.