É uma correria, a vida de Ana Paula Santos. Docente de Informática, passa a vida a “fazer piscinas” entre os estabelecimentos de ensino do Agrupamento de Escolas de Cister, no concelho de Alcobaça.
Os alunos não fazem ideia de quem ela é. Que apresenta no palmarés umas estonteantes 98 provas acima dos 42 quilómetros. No fundo, é a concretização da profecia do pai sempre que a via a subir por montes e vales: "esta filha tem pernas de cabra da serra".
Foi há coisa de 15 anos que as corridas propriamente ditas lhe tomaram conta dos tempos livres. Agora, raro é o fim-de-semana em que não entre numa prova, das mais curtas às mais longas.
A primeira maratona de estrada fê-la em 2007, não muito tempo depois de ter sido iniciada nas corridas por Luís Conceição, esse mito do atletismo distrital.
E também por Bruno Silva, que frequentava o ginásio que ela abrira em Pataias quando regressou à localidade após duas décadas em Coimbra. “Puxaram-me para ir fazer umas corridas e no primeiro treino espetaram-me uma sova de 10 quilómetros”, conta.
Naquela altura, há pouco mais de dez anos, “as pessoas ficavam a olhar quando viam alguém a correr”. Mas foi assim que tudo começou. Foi à Corrida das Fogueiras, em Peniche, e adorou “aquela festa toda”. Pouco tempo depois aventurou-se na meia-maratona, em Lisboa e acabou “de rastos”.
Não esmoreceu, pelo contrário, e “nunca mais” parou. O “convívio” entre pares e a “satisfação imensa” de correr eram o seu motor. Entretanto, cansou-se da “monotonia da estrada”. Uma sensação que foi crescendo com o advento dos trails. E encontrou o seu habitat. “Gosto de correr provas técnicas, de desafios com dificuldade”, explica a atleta do Burinhosa.
Lembra-se de ter feito uma prova em Madrid que diziam ser a mais dura do mundo. ”Agora olhamos para trás e dá vontade de rir.” Nessas provas, encontrava os nomes incontornáveis do trail nacional, como Armando Teixeira, Carlos Sá e Jorge Serrazina. “Sou da velha guarda”, diz.
A extensa lista de 98 provas acima da maratona já poderia ter dobrado a centena se Ana Paula não se fartasse. É verdade. A atleta já desistiu de eventos depois de percorrer mais de uma centena de quilómetros, apenas e só, porque se aborreceu.
Aconteceu, por exemplo, no EstrelAçor, percorridos que estavam “130 ou 140 quilómetros” dos 180 que compunham a prova, apenas e só porque sim. “É uma prova mais corrível e monótona, fartei-me e desisti. Sou assim. Se não me está a dar gozo ponho de lado.”
Ronda del Cims
No passado mês de Julho colocou a cereja no topo do bolo. Não que se possa encher de guloseimas, porque na vida de ultra-maratonista as calorias são contadas à unidade, mas porque se tornou a primeira portuguesa a concluir os 170 quilómetros da Ronda del Cims.
Parece um feito de jovem inconsciente, mas Ana Paula Santos já chegou aos 57 anos. Sem qualquer vontade de abrandar, ainda assim.
“Não sabia o que ia dar e foi a prova da minha vida. Estava bem preparada e planeámos tudo muito bem. O primeiro dia é fundamental e fomos com muita calma, para não desgastar. Em Andorra temos de ir sempre focados, a ver onde pomos os pés. Não dá para dormir, porque um deslize e é a morte do artista.”
Além do Hélder, durante a maior parte do percurso teve a companhia do castelhano Miguel e do luso-andorrano Dinis. São estes laços que se criam entre “pessoas que não se conhecem” que a encanta. “A ligação que se criou, o trabalho em equipa, a entreajuda foi fundamental para terminarmos esta prova. Nunca os vou esquecer”, assegura.
O homem do martelo
Foram os primeiros 170 quilómetros que Ana Paula concluiu. Já tinha feito aqueles 130, 140 nas provas em que tinha desistido, mas esta foi uma meta definitivamente atravessada. Mas não foi fácil. “Em tudo que é provas acima de 40 quilómetros, chega uma altura em que o corpo vai abaixo”. Dizem que “chegou o homem do martelo”.
“Andamos quilómetros e quilómetros em que parece que o corpo não reage, mas sabemos que do nada vamos dar a volta.” É uma questão psicológica, assegura. “Ficamos mais tristes, desanimados, pensamos que estamos a arrastar-nos, sem força, nem energia, mas de repente há um clique e voltamos a ter força, não consigo perceber porquê.”
Ana Paula dorme uns “15 minutinhos” e quando acorda já não lhe doem os pés e está mais bem disposta. “Até parece que estamos a começar de novo. O problema é que as quebras começam a aparecer cada vez mais rapidamente.
Demorou 61 horas e quatro minutos para concluir a Ronda del Cims. “Tudo é árduo nesta prova, primeiro foram os 170 quilómetros, que nunca tinha feito, a brutalidade da altimetria, da altitude que nos condicionava a recuperação e o terreno muito difícil, sempre muita pedra, gravilha, terrível mesmo, não há um troço fácil. Muita gente foi barrada. Também já me aconteceu”, recorda.
[LER_MAIS] Para quem começou nesta vida aos “quarenta e poucos”, não está nada mal. “É um escape. Só consigo desligar do trabalho a correr. A adrenalina é um vício”, sustenta.
“Em Andorra havia locais em que tínhamos de ver onde púnhamos a ponta do pé para passar, com os bastões nas mãos e agarrados a correntes. Se a pessoa entra em pânico, nem para trás, nem para a frente, fica ali pendurada. Era de noite, mas já lá tinha passado de dia e sabia o abismo que havia.”
No último dia, a chegar a um cume, num “carreiro fininho”, deu de caras com uma manada. Teve de se encostar à rocha e deixar as vacas passar. “Se elas decidem vir quando estou a meio da subida tinha de correr à frente delas até lá a baixo”, diz. E ri.
Estava quase a cortar a meta. Estava quase a emocionar-se. Foi a primeira portuguesa a concluir a prova, os 13.500 metros de desnível acumulado, o percurso quase todos acima dos dois mil metros, apesar de já várias o terem tentado.
“É uma felicidade chegar ao fim, é uma satisfação imensa e desta vez vieram-me as lágrimas aos olhos ainda antes de cortar a meta. Sofremos muito, houve sítios em que desesperei por ser tão difícil, mas quando terminamos sentimos que compensa tudo.” As dores passam e mesmo aqueles que praguejaram “passados três ou quatro dias estão desejosos por voltar.”
Ana Paula ainda não decidiu qual será o próximo grande desafio em que se vai meter. Até porque, sendo professora, não consegue meter férias quando lhe apetece. Há provas a que vai todos os anos, outras gostava de conhecer, como o Tor des Géants, em Itália, e também era menina para se meter nos 233 quilómetros do Eufòria, em Andorra.
A certeza é que vai continuar a correr “enquanto puder”. “Esta foi uma libertação e uma viagem interior. Vamos connosco, com a natureza, desligamos do resto do mundo. Muitas vezes nem pensamos, vamos focados. E ficamos mais sensíveis. Com o calor, até chamei o vento e as nuvens…”