Descobrimos-lhe os defeitos com a frieza sem condescendência de quem ainda não a sente sua, e enumeramos-lhe as qualidades com sentido prático, sem ternuras, como se nesta relação para a vida tivesse que ser ela a fazer todo o trabalho.
Descobrimos-lhe a vista soberba, as torneiras feias, os azulejos estranhos, o chão bonito, as horas em que lhe bate o sol, o ruído que chega da rua e as janelas aos quadradinhos que sempre quisemos ter.
Avaliamos o espaço imaginando como poderá receber as nossas coisas, e sentimos a traição que lhes faremos quando as trouxermos, arrancadas ao seu – nosso – lugar por mãos estranhas, e deixadas ali, perdidas no meio do eco, à espera: os livros apertados nos caixotes, os quadros sem poder respirar dentro do plástico, a roupa atafulhada em malas, as minudências de uma vida misturadas com o mealheiro, os fósforos, as luvas de jardinagem, a bolinha anti stress e o termómetro.
E de repente, na nossa casa já não temos Casa, nenhum espaço nos contém a existência e experimenta-se uma espécie estranha de liberdade, frágil e angustiada.
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*Professora de dança