A pele é macilenta e tem uma magreza enferma que lhe confere uma improvável elegância clássica. Junto à linha limite da testa desponta uma fina auréola de cabelos brancos que insiste em resistir ao tratamento semanal que lhe devasta as veias e que atravessa a malha da peruca como uma erva selvagem que não sucumbe à primeira roça.
Veste-se irrepreensivelmente e senta-se ao lado dele todos os dias junto à vitrina que dá para o lago do jardim. Do lado oposto – a porta. Monitorizam os dois a entrada e a saída de quem chega e abandona a casa. Falam muito durante o dia.
Comentam a refeição que acabaram de fazer e a que se sucederá dali a umas horas e recordam uma família comum que dizem ter tido quando se conheceram os dois durante a infância em Benguela.Ignoram já o real ritmo do calendário, mas reconhecem ainda a diferença entre o dia e a noite.
Ele tem Alzheimer, ela cancro e demência. Sorriem-me ainda os dois à chegada assim que empurro a pesada porta de entrada. Há dias em que sou filha dele, outros em que sou irmã ou até uma prima afastada dos dois e já faço parte da família comum que dizem ter tido na infância [LER_MAIS] – feliz – que viveram em Angola.
Ele adoeceu há dias. Deixou de se sentar com ela, durante uma semana, no sofá verde que fica entre a vitrina que dá para o lago e a porta que dá entrada na casa. Ela passou a percorrer o corredor em frente do quarto dele à espera de notícias.
Ele desadoeceu mas deixou de se locomover sozinho. Passou a precisar de um amparo forte do lado direito para não se desequilibrar no trajecto até ao sofá. Ela insiste, desde então, em oferecer um amparo – instável – do lado esquerdo.
Diz-me a mim (que naquele dia sou tia dele), que sempre foi assim. Que sempre cuidou dele quando eram pequenos e brincavam juntos, sem terem noção do real ritmo do calendário, junto à baía azul de Benguela.
Conta-me também que está ali, na casa do sofá verde entre a vitrina que dá para o lago e a porta da entrada, porque as filhas não querem que ela viva sozinha e porque alguém lhe pediu para ela ajudar a cuidar dele que já não tem mais amigos vivos. Ele, sei eu, nunca esteve em Angola e nunca passou além de Ayamonte.
Eu, todas as semanas, quando atravesso o limiar da porta da casa do sofá verde, passo a ter uma família que viveu em África. Ela garante-me sempre, que os dois, viveram uma infância mesmo feliz.
*Assessora de imprensa