O annus horribilis de 2017 não deixou indiferente Duarte Confraria, 24 anos, bombeiro de 3.ª. Em Junho, mais de 60 pessoas perderam a vida no incêndio que devastou Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos, com falhas nas comunicações que impediram os pedidos de socorro. Quatro meses depois, o Pinhal de Leiria também foi consumido pelas chamas.
Então com 17 anos, o jovem recorda-se de ter subido a um ponto alto nos Pinheiros e ter avistado com o pai o laranja no horizonte. “Caiu-me a ficha. Nesse dia disse aos meus pais que me ia alistar.”
A crise de voluntários nos bombeiros tem vindo a acentuar-se nos últimos anos. São várias as vozes que se têm feito ouvir com alertas para a necessidade de rejuvenescer e aumentar o número de soldados da paz. O JORNAL DE LEIRIA tentou perceber o que ainda leva jovens a dar tudo de si pelo outro, sem receber nada em troca.
Sem qualquer ligação familiar aos bombeiros foi o sentimento de “impotência” e o “acumular de tragédias” que levou Duarte Confraria a pensar: “se calhar posso fazer alguma coisa para ajudar os outros”. É isso que ainda hoje o move. Já sentiu o fogo de perto e presenciou duas mortes em serviço pré-hospitalar: paragens cardio-respiratórias que não foi possível reverter. “Quando cheguei ao quartel é que me caiu a ficha. Marca sempre porque são vidas que se perdem. No momento, há o sentimento que ‘talvez pudesse ter feito algo mais’, mas depois sabemos que fizemos tudo o que era possível”, confessa.
Medo, há sempre um pouco. Tristeza pela perda humana também, mas é o altruísmo de fazer o bem sem olhar a quem que conforta Duarte Confraria. “É gratificante sentir que ajudamos mesmo as pessoas. Sou voluntário e não estou aqui para ganhar nada. No Verão, no combate aos incêndios, há uma compensação da Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil, mas não é com o objectivo de receber que ajudo”, salienta.
A adrenalina de estar numa frente de fogo e acreditar verdadeiramente que apesar de ser só mais um pode fazer a diferença faz com que a disponibilidade seja quase a 100%. No ano passado, Duarte atravessava a A1 com a família para ir para o Algarve, quando se apercebeu do incêndio na zona de Ourém. “Só a olho nu, consegui ver que o fogo já estava a passar de um lado para o outro. Não consegui ficar indiferente. Liguei ao comandante e perguntei se precisavam de mim.”
O bombeiro obrigou a família a voltar para trás e a deixá-lo no quartel. “É sempre bom haver mais um a ajudar. Só no dia seguinte fui para o Algarve de autocarro.”
Duarte Confraria considera que a falta de jovens nos bombeiros é reflexo dos tempos actuais. “As pessoas estão mais viradas para si mesmas”. “Olham mais para o seu conforto. Como voluntário, há um número de piquetes que têm de ser cumpridos, sempre à noite. Temos de deixar a nossa casa e vir dormir – quando dá – no quartel. Temos emergências e nunca é uma noite bem dormida. E as pessoas perguntam: o que é que eu ganho com isto?”, constata o jovem, estudante de Engenharia Civil.
O que mais lhe custa é a “falta de reconhecimento”. As pessoas só se lembram dos bombeiros quando precisam, “mas esquecem-se que são bombeiros que vão na maioria das ambulâncias INEM que se vêem a circular”.
Na pandemia da Covid-19, Duarte Confraria viveu praticamente dois meses na corporação. “Senti que estávamos realmente a fazer algo de bom. As pessoas estavam assustadas e quando fazíamos um serviço no pré-hospitalar senti mesmo o calor humano.”
Consciente que arrisca a vida pelos outros, o bombeiro recorda um incêndio de há dois anos, onde correu com a sua equipa para salvar uma casa em risco: “Estive três dias no terreno e numa das situações chegámos e encontrámos uma família com um regador a tentar como podias alvar os seus bens. Controlámos o fogo e foi mesmo gratificante. Senti que ajudei mesmo aquelas pessoas.”
Ser bombeiro enche-lhe o peito de orgulho, o mesmo sentimento que os pais têm quando vêem o filho sair para um incêndio. “Sei que ficam preocupados, mas também orgulhosos.”
Filho de bombeiro, bombeiro é
Guilherme Triguinho, 20 anos, e Matilde Botas, 18 anos, estão a terminar a recruta nos Bombeiros Voluntários de Vieira de Leiria. Em ambos corre-lhes no sangue a adrenalina de estarem na frente de combate a incêndios ou de seguirem numa ambulância para salvar uma vida.
Antes de ir para a Força Aérea, o pai de Guilherme foi bombeiro. Apesar de garantir que não foi influenciado pelo progenitor, o jovem afirma que a paixão de ser bombeiro nasceu consigo. “Quando estava no jardim-de-infância e ouvia ambulâncias ia a correr para a janela”, revela.
Em 2018 entrou para os Voluntários da Vieira de Leiria como cadete. “É uma causa nobre, que apoia a população em tudo o que é preciso. Aqui construímos também uma segunda família. Há uma união e muito trabalho em equipa”, justifica.
Matilde Botas nasceu nos bombeiros. Desde que se lembra que o quartel é a sua casa. Quando estava de serviço, a mãe, bombeira, levava- a ainda bebé para a corporação, onde passava a noite. “Entrei nos bombeiros com 7/8 anos na fanfarra. Um ano depois entrou para os infantes e fez todo o percurso até agora. O tio foi comandante dos Voluntários da Vieira de Leiria. “Ser bombeira é uma honra, pois tenho possibilidade de ajudar os outros. É como se fosse um segundo trabalho, mas voluntário. No Verão temos os incêndios e o papel dos voluntários é muito importante porque há falta de pessoas para o combate”, afirma, ao admitir, com um brilho nos olhos, que a mãe se orgulha de lhe seguir as pisadas.
A recruta exige tempo, dedicação e determinação. O que não falta a estes jovens, que abdicam de algum tempo livre e de fins-de-semana para completarem o curso. Os incêndios florestais é o que lhes provoca “mais adrenalina”, afirma Matilde Botas, com a concordância de Guilherme Triguinho.
“O nosso País é fustigado pelos incêndios todos os anos”, aponta o bombeiro estagiário, ao revelar que já fez algumas primeiras intervenções, uma vez que estuda na Escola Superior Agrária de Coimbra. Este ano já irá para os incêndios, através da Força de Sapadores Bombeiros Florestais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, que passou a integrar recentemente. Apesar de estar num serviço profissional, Guilherme garante que não abandonará os voluntários.
A vontade de ajudar os outros esteve presente também no curso que Matilde escolheu, tendo entrado em Educação Social, na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais, em Leiria. Para a jovem recruta, muita gente não consegue perceber a causa humanitária dos bombeiros. “Perguntam-me: ‘por que é que vais para lá se não recebes nada?’ Mas ser voluntário é mesmo isso. Estar aqui sem receber nada em troca”, sublinha. Já Guilherme tenta ignorar os comentários de quem diz que “os bombeiros não fazem nada” e não reconhecem o seu trabalho. Mas, basta “um sorriso e um obrigada”. “Ficamos contentes porque pudemos ajudar aquela pessoa.”
Emergência pré-hospitalar
A terminar a licenciatura em Enfermagem, foi a vontade de ajudar os outros no pré-hospitalar que desafiou Ana Gil Pinto a ingressar nos Bombeiros Voluntários da Ortigosa. Aos 24 anos, a jovem tinha curiosidade em saber como funciona toda a logística e o apoio que é dado às vítimas antes de chegarem às urgências. “Sem o pré-hospitalar não seria possível conhecer a abordagem feita à pessoa quando chega ao hospital. Trabalhamos todos para o mesmo.”
Para Ana Gil, ser bombeira é acima de tudo “pensar nos outros primeiro”. “Servimos uma população e temos de lhe saber dar resposta. E não envolve só pessoas, mas animais e bens. É uma responsabilidade acrescida, mas estamos lá para os ajudar”, resume a recruta, que garante estar preparada para enfrentar qualquer serviço dos bombeiros, mesmo incêndios urbanos, onde se sente menos confortável.
O lema de dar a vida pelo outro assenta-lhe bem, pois considera que ser enfermeira é também um pouco isso. Por isso, não se assusta se tiver de chegar à frente para salvar alguém. “Temos de dar o melhor de nós. Quando vamos buscar o familiar de alguém é como se fosse nosso. Combater os incêndios florestais é um risco, mas sei que faz parte de ser bombeira. Nada disso me impediu de vir”, sublinha, ao realçar que gosta muito de fazer parte dos voluntários e reconhece toda a aprendizagem que tem tido, com a experiência de outros.
Os turnos nocturnos não a afectam e até considera ser mais fácil nos bombeiros do que no hospital. “Apesar de termos de sair assim que toca a sirene, conseguimos descansar mais tempo. É menos esgotante”, admite, referindo, contudo, que sair numa ambulância para socorrer alguém “é mais stressante” do que estar no hospital, “que é mais controlado”.
Compreensão e conciliação com vida social