Leiria vai-se insinuando como uma cidade cúmplice. Basta rever a programação cultural da cidade para confirmarmos o quanto já foi feito só este ano e o mais que ainda nos espera. A lista é longa e farta.
Transversal no que à variedade de propostas apresentadas diz respeito. Música, dança, teatro, cinema, outros olhares sobre os nossos museus, revisitações históricas, festivais de rua e tudo mais que ainda ficaria por enunciar.
Um conjunto da atividades que têm trazido as pessoas para a rua, proporcionado encontros e partilhas de experiências, pisar territórios desconhecidos feitos de iniciativas muito diferentes entre si, por vezes quase dispersas mas sobretudo diferenciadas.
Todas elas únicas e com entidade própria. Lorca dizia, acerca do tornar corpóreo um texto de teatro quando se cumpria no palco, que era “a poesia que se levanta do livro e se torna humana”.
Toda esta vida cultural que tem preenchido a cidade só se valida pela existência de público. Ideias que se materializam em espetáculo, em visitas, na correspondência entre quem tem a ideia e o seu destinatário.
Só vale a pena fazer arte quando o produto artístico atinge o público, quando entre quem produz e o espetador se estabelece uma relação, um diálogo feito de aderência emocional e de reflexão crítica.
Poder-se-á gostar mais ou menos, pouco importa. É sabido que um produto novo ou uma estética diferente carecem de tempo até que se tornem inteligíveis e possíveis de ser incorporados por quem usufrui deles. Amiúde novos conceitos se confrontam com a indiferença, com a estranheza, senão mesmo com a rejeição. Mas sempre foi esse o caminho trilhado pela arte.
Fácil é repetir modelos e formas de fazer cuja aceitação e êxito estejam garantidos. Mas isso não é arte, é comércio, entretenimento, adormecimento do pensar. De modo invisível a cumplicidade entre Leiria e as suas gentes vai-se alicerçando.
A ideia de que cá não se passa nada, de que era necessário ir para fora para ver alguma coisa com qualidade vai fazendo parte do passado. A nossa cidade oferece-se como paradigma de uma cidade com cultura.
Hoje já não saímos para ver, outros vêm para ver [LER_MAIS] o que se faz por cá. Os melhores entre os melhores que fazem arte passaram a inscrever Leiria nos seus roteiros. Mas o público, os cidadãos, todos nós, não podem ser entendidos como uma entidade abstrata e acrítica.
Formar, produzir, programar exigem rigor e conhecimento. Exigem o entendimento da época em que a coisa é feita, das condicionantes humanas, sociais, económicas. Leiria conquistou já esta cumplicidade insinuante com quem aqui vive e com quem nos visita.
É excelente mas não basta. Vai ser necessário mais, muito mais, para que este namoro encantatório evolua para uma relação consistente e duradoura. Urge criar condições para quem quer fazer Arte (e aqui a maiúscula não vem por acaso) tenha condições estruturais e financeiras para estudar, investigar, trabalhar, produzir.
Sinceramente, receio que possamos todos iludirmo-nos com um êxito passageiro e se perca a possibilidade de construir futuro.
Receio que visões unilaterais da coisa da Arte e da Cultura levem a tomadas de decisão que conduzam à indiferença e ao esvaziamento da multiplicidade de propostas que são a mais-valia da nossa cidade.
*Diretor artístico do TE-ATO
*Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990