“Eu sou um ignorante mas li alguns livros. Tudo neste mundo tem um propósito. Até esta pedra. Quando nasces. Quando morres. Quem sabe? Não, eu não sei qual é o propósito desta pedra, mas ela deve ter um, porque se esta pedra não tem propósito, então tudo é inútil. Até as estrelas! Pelo menos, acho que sim. E tu também. Tu também tens um propósito.”
– O Louco, interpretado por Richard Basehart, no filme A Estrada, de Federico Fellini
Depois de seis meses de restrições e confinamento voltei à sala de cinema.
A escolha dos bilhetes reflectiu as restrições sanitárias e a proximidade das cabeças na fila da frente deixou de ser uma ameaça ao bom visionamento do ecrã.
Mesmo com os que me são próximos a distância obrigatória implica agora uma cadeira de intervalo e a plateia cheira, por estes dias, a álcool desinfectante.
Regressei à sala escura por causa do ciclo comemorativo do centenário do nascimento de Federico Fellini para ver A Estrada (1954), um dos filmes que marcaram o seu início de carreira como realizador e talvez um dos mais poéticos da sua filmografia.
Numa homenagem às artes circenses, que Fellini sempre admirou, a história desenrola-se em torno de três personagens – Gelsomina, interpretada por uma ímpar Giuletta Masina, a actriz e mulher que marcaria para sempre a vida e a obra do realizador, – Zampanò (Anthony Quinn) – um saltimbanco forte e bruto que a leva para trabalhar com ele na sua vida de estrada – e o Louco, pelo rosto de Richard Basehart, um equilibrista fatalista e folgazão determinante para o destino das outras duas personagens.
Gelsomina, uma espécie de bobo da família por causa das suas feições e comportamento bizarro e cuja ingenuidade e desejo de amar e ser amada atravessa todo o filme, é vendida pela mãe a Zampanò.
Crédula e inocente, Gelsomina entende o caminho que inicia com Zampanò como a possibilidade de sentir um amor que nunca experimentou e que acabará por nunca se manifestar.
Zampanò, para quem apenas a sobrevivência é lei, transforma Gelsomina num mero instrumento para os seus propósitos.
Usa-a no seu número de circo, onde impressiona ao rebentar correntes de ferro com a força de uns pulmões de aço; usa-a para recolher o dinheiro de quem os vê e que os permite continuar a viver uma vida de indigentes numa miserável Itália do pós-guerra; usa-a para prosseguir na sua estrada para nenhures acompanhado de um ser estritamente utilitário a cujas interrogações se limita a responder com grunhidos silenciadores.
A chegada de uma terceira personagem à história, Richard Basehart, no papel do equilibrista Louco, devolve a Gelsomina, sob a forma de uma belíssima canção de Nino Rota (o compositor predilecto de Fellini), a crença de que o afecto é possível.
E anuncia a tragédia que se sucederá, o «cordeiro sacrificial» de toda a trama que será afinal Gelsomina.
Num filme que nada tem de linear, A Estrada é um tratado sobre a alma humana e sobre a nossa necessidade de salvação mesmo quando sabemos que isso jamais poderá acontecer.
Zampanò não é a salvação de Gelsomina, Gelsomina já não serve para expiar a culpa de Zampanò, nem a sabedoria trocista do Louco o salva da morte que para ele esteve sempre iminente.
No final do filme, numa cena arrebatadora em que o gigante Zampanò maltratado pela vida chora abandonado numa praia deserta, Fellini filma de forma tocante a brecha que Gelsomina abre nos pulmões de aço do homem terreno que finalmente se interroga sob a forma de pranto.
Ou nos interroga a nós que mesmo de máscara e óculos embaciados projectamos no seu abandono os nossos mais íntimos temores sem que no lugar ao lado possamos agora encontrar consolo na mão que nos acompanha.