E se um dos tesouros da arte urbana em Leiria se pudesse encontrar, afinal, não à vista de todos em fachadas, muros e outros suportes no espaço público, mas, pelo contrário, longe de olhares desprevenidos, no miolo de uma fábrica desactivada?
Uma galeria clandestina na periferia da cidade, onde se descobrem diversas fases dos cães de Ricardo Romero (Projecto Matilha), também gatos, tigres e dragões, o rancho intergaláctico de Tenório, o Bicho que quer ser gente, a distopia de Frio e o legado de vários nomes internacionais que vieram ao evento Paredes com História, entre outros temas e autores, no que é, provavelmente, o maior e mais rico exemplo, no concelho, da ocupação de edifícios abandonados por artistas de pintura mural e grafiti.
Ao centro, no piso térreo da antiga fábrica, os robôs folclóricos de Tenório dão corpo ao verso “Dame veneno que quiero morir bailando”, retirado de uma canção da banda punk galega Novedades Carminha.
São o produto de uma tarde de sábado em 2018, “só por diversão”, como quem vai “fazer surf ou outra coisa qualquer”, explica ao JORNAL DE LEIRIA. “Só vem ver esta pintura quem quiser vê-la”, ou seja, alguém que “procurar chegar” ao lugar onde ela se encontra, o oposto da arte que confronta quem passa na rua.

Pintar no interior de um edifício desocupado remove a audiência, mas, por outro lado, permite arriscar, experimentar e usar a liberdade criativa sem invadir a liberdade dos outros, sejam artistas ou público.
Muitos trabalhos estão dispostos lado a lado, como telas com vários metros de comprimento e altura numa galeria ou museu, o que leva Ricardo Romero a dizer que o espaço “tem um potencial incrível” e “poderia ser a solução que tanto se ambiciona para os artistas visuais em Leiria”.
Desde “2008 ou 2009” que o frequenta e é por causa dele que ali existem ou existiram pinturas de Sebas, Guido van Helten e Metis, artistas que vieram ao Paredes com História, evento de que é fundador e curador.
O esqueleto cinzento como pano de fundo torna mais vivas as cores, num cenário degradado e despido, à excepção de dezenas de pneus e componentes de automóveis espalhados pelo chão sem ordem aparente.

“Procuro sempre que a origem esteja na rua e no lado mais subversivo ou anárquico da arte”, afirma Ricardo Romero, que enquanto mentor do Projecto Matilha e fundador da fundador da M Gallery & Studio na Rua Comandante João Belo (em Leiria) está plenamente integrado no circuito de arte contemporânea e aproveita a fábrica abandonada, também, para executar pinturas murais que depois vende no suporte tela ou fotografia.
Com o edifício para venda no mercado imobiliário, a galeria clandestina na periferia da cidade (sempre em mutação, hoje diferente de amanhã) tem, previsivelmente, os dias contados. O que não incomoda quem actualmente lhe dá uso. O efémero está na natureza da arte urbana, quer exista a céu aberto ou debaixo de tecto: “Faz parte do jogo que nós jogamos”.