Sábado, 6 de Julho de 2019. Sábado, estranho, este, de que vos venho falar. Um sábado como outro qualquer, 2019 anos após o nascimento de Cristo; 75 anos e um mês após o desembarque das tropas aliadas na Normandia, que viria a pôr cobro à ascensão do domínio fascista que queria domar o mundo; 45 anos após a revolução que pôs fim a um regime fascista em Portugal; dia em que é publicado na página 9 do diário Público, assinado por Fátima Bonifácio, o manifesto fascista Podemos?
Não, não podemos. O mesmo dia de sábado em que em Santa Comba Dão (ironia esta a de lá estar sepultado Salazar!) se representa, na apinhada sala do Centro Cultural – tal como na véspera e como viria a acontecer numa série de cinco representações neste fim-de-semana – Paixão, assinado por Rafael Barreto, com direção musical de Artur Guimarães e coreografia de Catarina Alves.
Sábado estranho, este, em que uma fascista encartada diz que os ciganos são inassimiláveis; que os africanos e afrodescendentes se auto-excluem, que odeiam ciganos, que constituem etnias irreconciliáveis, que são abertamente racistas, que detestam os brancos sem rodeios, enfim, que ciganos e africanos não fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade.
E tudo isto diz a senhora, porque já falou com a “empregada negra do meu prédio” e porque já apreciou “o modo disfuncional como (os ciganos) se comportam nos supermercados”.
Mas é o que a senhora argumenta quando se opõem à criação de um observatório do racismo e da discriminação que, segundo ela, seria criado em gabinetes almofadados onde se sentariam os observadores.
Segunda tão sábia senhora, tal observação só é possível quando se frequentam “feiras e supermercados baratos”, e que isso “é tremendamente maçador e, sobretudo, exige muita coragem física”.
Acontece que frequento feiras e supermercados baratos, que não me maço quando estou com outros igualmente diferentes de mim e [LER_MAIS] sobretudo sou assumidamente um cobarde e pouco dado a manifestações de coragem física (que, a propósito, a dita senhora acusa a polícia de não ter).
E por via do que acabo de dizer, sábado lá fui até Santa Comba Dão.
Assisti, deliciado, a uma produção onde 43 adolescentes e jovens, 25 músicos, 32 técnicos, cinco colaboradores e um sem número de pais e encarregados de educação, sob a égide da Associação de Música e Artes do Dão e do Conservatório de Música e Artes do Dão, com o feliz título de Paixão.
Musical. Acontece que este espetáculo falava da Paixão pela música, da Paixão que é estar uns com os outros de igual para igual. Acontece que este espetáculo foi encenado por um preto.
Um preto que nasceu, vive e trabalha num dos mais problemáticos bairros de Lisboa.
Um preto que tem um sorriso lindo e uma gargalhada fácil com que abraça todos os que o rodeiam.
Um preto que trabalha com outros pretos, e brancos e ciganos, e com todos sem exceção.
Um preto que acolhe e trabalha com todos que tenham uma Paixão pela Arte e com ela se proponham a construir um mundo melhor, mais justo, feito de oportunidades.
Um preto que a patética senhora Fátima Bonifácio não conhece, nem o seu mundo, nem o seu trabalho e valor. Um preto que tira miúdos da rua e lhes oferece a oportunidade de pertencerem a algo maior.
Um preto, um só, pelos vistos é quanto basta!, que deita por terra toda a argumentação fascista da dita senhora.
*Psicólogo clínico
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográrfico de 1990