“Óh Pinto, arranje-me uma sala para uma paródia. Agarre na motorizada e vá tratar disso”. Octávio Pinto, antigo militar, reproduz o pedido que, há 50 anos, recebeu do seu comandante de companhia no então Regimento de Infantaria nº 5, em Caldas da Rainha, onde era cabo miliciano.
Tal como lhe foi ordenado, o jovem cabo pegou na motoreta e fez-se ao caminho, em direcção a Usseira, em Óbidos, para tentar reservar o salão da colectividade, à época considerado “o melhor do concelho”.
Como não conseguiu falar com ninguém da direcção, dirigiu-se à vila de Óbidos, onde vivia, e bateu à porta da Sociedade Musical e Recreativa Obidense. Aqui, teve melhor sorte.
“Reservei o espaço a pensar que era para uma patuscada, como me tinham dito. Tenho ideia que ainda andei a arranjar mesas e cadeiras e que levei um ou dois garrafões de água-pé”, recorda o antigo militar, hoje com 72 anos e a viver no lar da Misericórdia de Óbidos.
Octávio Pinto estava, então, longe de imaginar que a ‘patuscada’ era afinal uma reunião alargada do Movimento dos Capitães. O encontro deu-se a 1 de Dezembro de 1973 e juntou no espaço do actual Auditório Municipal Casa da Música cerca de 180 oficiais de todo o País, ficando na história como um dos três encontros conspirativos mais importantes na preparação do golpe militar que, meses mais tarde, pôs fim a décadas de ditadura.
Historiadora e comissária executiva da Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril, Maria Inácia Rezola não tem dúvidas em classificar o encontro como “determinante para a organização do Movimento [dos Capitães]”, marcando “uma evolução no seu propósito”.
Se na primeira reunião, realizada em Alcáçovas a 9 de Setembro de 1973, estiveram em cima da mesa “essencialmente razões de ordem corporativa”, em Óbidos “a guerra e a questão colonial passaram a estar no centro das atenções, acabando por, em poucos meses, conduzir à decisão de derrubar o regime”.
Segundo a investigadora, o encontro de Óbidos tornou-se tamIDE teve conhecimento da reuniãobém marcante, porque serviu de “lançamento das bases organizativas” que propiciaram a preparação do 25 de Abril.
“O movimento reorganiza-se, escolhe uma nova direcção, constituem-se novos grupos de trabalho e escolhem-se potenciais chefes para o caso de a ditadura ser derrubada”, sustenta.
Entre os presentes na reunião estava o agora coronel João Madaleno Lucas, então capitão no regimento de Caldas da Rainha. Recorda-se de ter sido uma “longa noite” de trabalho, que acabou madrugada dentro.
“Houve muitas intervenções. Nomearam-se pessoas para fazer contactos com outras unidades e definir um plano de operações”, conta o militar, agora aposentadoque diz ter saído de Óbidos com a convicção de que “algo iria ser feito para haver uma mudança no País”.
Nessa reunião, a maioria dos presentes votou a favor da “linha legalista”, ou seja, que o caminho a seguir seria o de “utilizar reivindicações exclusivamente militares para recuperar o prestígio do Exército e pressionar o Governo”.
No entanto, esta opção venceu por “estreita margem em relação à via do golpe de Estado”, frisa Maria Inácia Rezola, que destaca ainda a decisão de alargar o movimento à Marinha e à Força Aérea.
“A ideia do ‘isto só lá vai com um golpe’ ganhou força”, assume João Madaleno Lucas, que acredita que a PIDE teve conhecimento da reunião.
Essa é também a convicção de Maria Inácia Rezola. “O Governo estava a par das movimentações. Contudo, nesta fase mantinha ainda a crença na natureza corporativa da contestação”, alega a historiadora, sublinhando que, embora o movimento tivesse uma feição “semi-clandestina, tudo foi preparado com extremo cuidado, procurando-se, entre outras coisas, diversificar os locais do encontro”.
Mesmo assim, “o receio estava sempre presente”, reconhece o coronel João Madaleno Lucas, que naquele dia se limitou a “assistir” à reunião, mas que, meses mais tarde, estaria envolvido no golpe das Caldas, de 16 de Março de 1974, que foi travado pelas forças afectas ao regime, mas que abriu portas para o que viria a acontecer a 25 de Abril.
Seria apenas na sequência dessa revolta de Março que Octávio Pinto descobriu o tipo de “paródia” que tinha ajudado a organizar em Óbidos. “Não participei. Limitei-me a arranjar o espaço, acreditando que seria apenas uma patuscada”, assegura o antigo militar, que sofreu as consequências da sua acção ao ser transferido compulsivamente para os Açores, com uma única explicação: “era do interesse do serviço”. Embarcou a 23 de Dezembro e regressou a 28 de Maio de 1974, já após a Revolução dos Cravos.
Sessão assinala data
Os 50 anos da ‘Reunião de Óbidos’ serão assinalados, esta sexta-feira, numa sessão na Casa da Música com a presença do Presidente da República. Pelas 14:50 horas, será descerrada uma placa evocativa, seguido-se as intervenções de Marcelo Rebelo de Sousa e dos presidentes da Câmara de Óbidos e da Associação 25 de Abril, entidades promotoras do evento.
Haverá depois uma mesa redonda onde três dos participantes na ‘Reunião de Óbidos’ – José Piteira Santos, Vasco Lourenço e José Gonçalves Novo – partilharão memórias sobre o encontro. O encerramento caberá a Maria Inácia Rezola.
À noite, pelas 21 horas, a Praça da Criatividade será palco de um concerto pela banda da Sociedade Musical e Recreativa Obidense, que terá como convidado o cantor e poeta Manuel Freire.