O ruído é suficiente para incomodar e cada um enfia-se como pode entre carros de cartão que tornam difícil circular no corredor da antiga Pousada da Juventude. “Espero que estejam extremamente desconfortáveis”, diz a artista Alexandra Saldanha, que está a guiar o público. A instalação procura imitar a perspectiva de quem anda a pé na Rua Direita, que continua aberta ao trânsito, ali perto, entre o Terreiro e a Sé, o que coloca peões e automóveis a disputar o mesmo espaço, praticamente palmo a palmo.
Na décima edição, A Porta regressa ao centro histórico de Leiria e a exposição Claustrofolia – desenvolvida em residência com Neuza Matias e Maria Pinheiro no contexto da programação Casa Plástica – não esquece os constrangimentos de quem vive e trabalha no bairro mais popular da cidade: “É a nossa forma de reclamar”, explica Alexandra Saldanha durante a visita, no arranque do festival, ao final da tarde da última segunda-feira, 2 de Junho. Já com a noite a cair, os primeiros concertos da edição de 2025: o fadista Sérgio Onze e o reencontro de Salvador Sobral (desta vez, integrado na banda Noko Woi) com o palco onde brilhou em 2022, o mágico jardim interior da Pousada, ao ar livre.
Passado e futuro
“Que caminhos se desenham por estas ruas?” A pergunta funcionou como ponto de partida para a organização preparar a edição de 2025 do festival, em que, entre novidades, até ao próximo domingo, 8 de Junho, também recupera lugares e artistas que marcaram edições anteriores.
A Porta, que em 2024 se instalou na ruína do convento dos Capuchos, este ano volta ao cenário onde começou: a Rua Direita e o centro histórico de Leiria. Foi a vontade de travar o declínio da Rua Direita que juntou Meia Dúzia e Meia de Gatos Pingados, o nome do colectivo na origem do festival, que surgiu em 2014 e logo ocupou ruas, lojas e até imóveis devolutos com uma explosão de artes e novas possibilidades.
“Uma alegria, uma maravilha. Costumam ser dias muito bons para nós”, comenta Ana Magalhães, da Cestaria Fonseca. “Sempre acarinhámos muito o festival. Era o festival, ao fim ao cabo, do centro histórico. Víamo-lo quase como uma coisa nossa, sentíamo-nos parte do festival”.
Desde o início, dar voz a problemas que afectam moradores e comerciantes do centro histórico é outro dos objectivos d’A Porta, que ali se enamorou por figuras como a “Dona Felismina” (1929-2022) e o “Senhor António das bicicletas” (1933-2025).
“Tirámos um domingo que até andámos todos a lavar estas montras velhas”, recorda Ana Magalhães. Mais difíceis, aparentemente, são os efeitos no longo prazo. “Chama a atenção das pessoas que já estão sensíveis. Os outros não ligam”.
Abrir espaços fechados
Devolver à população, revitalizar territórios inactivos. O edifício onde hoje funciona o Atlas, o quarteirão onde se encontra o bar Mulligan’s e o exterior da Villa Portela são exemplos de espaços em que o Festival A Porta entrou para imaginar um futuro diferente, quando estavam fechados e de costas voltadas para a cidade. A premissa mantém-se e justifica a intervenção na Pousada da Juventude (que já tinha sido utilizada temporariamente em 2022 e para onde a câmara admite agora expandir a biblioteca municipal) e pela primeira vez no centro comercial D. Dinis, onde se descobre a exposição Leiria e Leirienses de Ricardo Graça, o Habitat João Gago e actividades com curadoria do Caldas Late Night.
O mote “Que caminhos se desenham por estas ruas?” alimenta ainda a residência Porta Por Miúdos (com apresentação pública no próximo fim-de-semana) em que os mais novos se dedicaram a recolher impressões sobre o passado e o presente da Rua Direita e sobre o impacto do festival. E ancorou uma das conversas do ciclo Porta Vozes, agendada para ontem. Esta quinta-feira, na livraria Arquivo, pelas 17 horas, uma nova conversa e uma nova pergunta: “Como revitalizar os centros comerciais abandonados no centro das cidades?”.
“Com a ressalva de não ter estado presente em todas as edições, faço um balanço bastante positivo destes dez anos, com impactos importantes ao nível da divulgação cultural e, sobretudo, ao nível da possibilidade de criação de laços comunitários que são essenciais para a definição de uma visão prospetiva (que deve ser a do urbanismo) da cidade onde se deseja habitar”, afirma o arquitecto Pedro Trindade Ferreira. “Nesse sentido, a activação de espaços nem sempre acessíveis constitui precisamente uma das formas de enquadrar a possibilidade de imaginar essa cidade, nessa dupla dimensão comunitária (onde se enquadram as suas figuras e o modo de as relembrar) e enquanto forma de a habitar (recriando novos usos ou a sua intermitência)”.
Todas as artes
Na antiga Pousada, a exposição Claustrofolia manifesta-se em várias salas, cantos e recantos, como num sonho colorido vivido em parceria por Alexandra Saldanha, Neuza Matias e Maria Pinheiro. Entre outros elementos, há um sinal de “proibido proibir”, uma praia, um quarto em que os visitantes podem desenhar, pintar ou escrever, uma escadaria para ultrapassar a tristeza, um “museu de arte extraporânea”. E uma sanita, apresentada com música (e letra) de Alexandra Saldanha. “As três estamos de acordo que é muito belo salientar todas as coisas que são comuns à experiência humana”.
Em 2025, a Casa Plástica, que contempla a exposição 10 Edições d’A Porta na Rua Direita, estende-se por diversos locais, como o próprio festival, que tem programação na Rua Direita e transversais, no pátio da Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira, no Jardim Luís de Camões e no Centro Cívico, em vários estabelecimentos comerciais, no Centro de Diálogo Intercultural de Leiria – Igreja da Misericórdia, no Jardim de Santo Agostinho e no Moinho do Papel. Com música, oficinas, contos, dança, teatro, artes visuais, a Feira Bandida, momentos gratuitos e outros sujeitos a bilhete, num conjunto de propostas para diferentes estéticas e idades, da infância aos seniores.
Ana Lua Caiano (autora do melhor álbum português em 2024 para a equipa da Blitz) vai tocar no Jardim Luís de Camões (sábado, 23 horas) e diz ao JORNAL DE LEIRIA que está “ansiosa” para encontrar o “ambiente bom” do festival de que “toda a gente fala”.
Elo entre gerações
Novidade em 2025, é o Laboratório João Gago, com programação gerida por jovens voluntários – uma espécie de festival dentro do festival e homenagem a João Gago, voluntário d’A Porta que faleceu prematuramente no ano passado. O voluntariado cultural foi assunto noutra das conversas do ciclo Porta-Vozes na livraria Arquivo, terça-feira.
Alguns membros da equipa do festival vêm da primeira edição, muitos outros entraram a meio do percurso e hoje A Porta é um caso raro de sucessão no associativismo e capacidade para passar o testemunho à geração seguinte. Como um laço que une o que já existia – do Orfeão de Leiria à SAMP, do Te-Ato ao Nariz, da Fade In ao Texas, entre tantos outros protagonistas em Leiria – a horizontes que permanecem por desbravar.
“Que caminhos se desenham por estas ruas?” O impulso para reflectir sobre “o que era e em que se transformou a Rua Direita e o centro histórico de Leiria, ao fim de 10 edições a abrir portas”, aponta a organização. “Chamar a atenção para as suas necessidades mais emergentes e revelar o seu imenso potencial”.
Este ano, o domingo de encerramento do Festival A Porta acontece no Jardim de Santo Agostinho, com o habitual piquenique para o almoço e bailarico animado por Natércia Lameiro a fechar a edição de 2025. A partir das 10 horas e até ao final da tarde há workshops, históricas cantadas, yoga, retratos escritos e outras actividades. Destaque para a performance Monotrux por Wandré Gouveia.
Os últimos quatro dias do 10.º Festival A Porta (de hoje, quintafeira, até ao próximo domingo, 8 de Junho) trazem concertos de Evaya, Surma com Larie, Filipe Sambado, Fema, Cremalheira do Apocalipse, Vaague, Unsafe Space Garden, X-Wife, Aunty Rayzor, Caio, Veronica Fusaro, Travo, Maquina, Rossana, Ana Lua Caiano, Scúru Fitchádu, Von Di e Gardênia com Technofoguete.
A performance itinerante Kinski por Rui Paixão é um dos destaques da programação 1001 Portas do Festival A Porta em 2025, que inclui desde workshops até dança sénior criativa, poesia cómica e montras ocupadas com perguntas. Sábado, 7 de Junho, é o dia mais intenso, com actividades na Rua Direita e transversais. Muitas propostas Portinha para os mais novos e, ainda, a Feira Bandida. Já esta semana, houve jantares com desconhecidos e experiências surpresa Transporta-te.