Nasceu na localidade de Vale de Santa Margarida, no concelho de Leiria, mas ainda muito jovem foi com os pais para Moçambique. Depois de anos “intensos” naquele país, viu-se obrigada a regressar à aldeia que a viu nascer. Emília Marques, hoje com 67 anos, começou a ensinar em Moçambique e considera os tempos de África “os mais marcantes” da sua vida.
Quando foi para Moçambique viveu em Guijá, aldeia que viria a chamar-se vila Alferes Chamusca e, depois, cidade Trigo de Morais. Foi aqui que começou a frequentar o ensino primário. Mas, devido ao emprego do pai, a família mudou de localidade diversas vezes.
Após completar o 4.º ano, Emília Marques teve de parar de estudar porque a escola mais próxima da sua aldeia ficava a muitos quilómetros de distância. Contudo, passados quatro anos, a jovem confessou aos pais que gostava de voltar à escola.
Por essa altura começava o terrorismo em Angola, conta. O clima de medo e de insegurança que se instalou fez com que todos os residentes da aldeia onde vivia fossem embora. “O acampamento ficou vazio.”
Regressaram, então, à já chamada vila Alferes Chamusca. Tinha sido ali criado um colégio de freiras que pertencia à ordem de Santa Teresa de Menino de Jesus, onde Emília Marques completou, então, o 9.º ano de escolaridade. “Adorei aquele colégio. Foi um percurso que me deixou as grande amizades, aquelas que ficam para a vida toda.”
Após completar o colégio, foi para Lourenço Marques, actual Maputo, frequentar o Magistério Primário. “Havia qualquer coisa que não estava a ser feito [no ensino]. Havia coisas novas a ensinar aos miúdos.” Durante esses dois anos de formação, Emília Marques participou em diversas actividades, entre as quais, o teatro.
Terminou os estudos e começou de imediato a trabalhar. E é deste início de profissão que a professora tem memórias que jamais esquecerá. No primeiro ano de trabalho leccionou numa pequena sala que tinha “toros de eucalipto” a servir de banco para 85 alunos, divididos em cinco turmas. Crianças “que vinham do mato” e percorriam dezenas de quilómetros.
“Chegavam lá a escorrer suor, tão cansados, desidratados, mal alimentados, cheios de fome…” A maioria não sabia falar Português. Durante o Magistério Primário, recorda, aprendeu diversas técnicas para motivar os alunos. Mas aqueles “estavam mais do que motivados”. Eram crianças com “muitas carências, a todos os níveis” mas cheios de vontade de aprender, afirma Emília Marques.
Uma médica que visitou a escola detectou diversas doenças às crianças, entre as quais tuberculose, tinha e sarna. Fez alguns tratamentos e deixou medicamentos para que a docente pudesse continuar a ajudar os seus alunos. Emília Marques foi mais do que uma professora. Além de lhes ensinar a ler e a escrever, tratava-lhes das feridas, causadas pelas doenças. No caso da sarna, exemplifica, o cabelo das crianças tinha de ser rapado, o que deixava as feridas visíveis. “E eu pincelava as cabeças deles, com um produto que a médica tinha deixado”, recorda.
[LER_MAIS] Além disso, tomava com os alunos um suplemento vitamínico. “Aquilo cheirava a farinha dos porcos. Mas eu também tomava, para que eles vissem que não era nada que lhes fizesse mal. Era horrível, mas eu mostrava-lhes que era bom.” Tudo isto paralelamente à educação. “Foi um ano que…pior não pode haver. Mas que, ao mesmo tempo, me deixou tantas saudades. Gostava de ter continuado com aqueles alunos, eles precisavam tanto”, lembra. Mas, como estava grávida, teve de deixar o ano lectivo antes de terminar.
Moçambicana de coração
A Revolução em Portugal foi, para Emília Marques, “um choque emocional bom e mau.” Ouviu a notícia na rádio, ficou “eufórica” e correu a contar às suas colegas. Porém, quando chegou junto delas, encontrou-as em lágrimas. “Disseram-me que, agora, teríamos de ir embora. Mas eu disse que não ia. Aquela era a minha terra!”, conta.
Continuou a dar aulas. “Não tinha feito mal a ninguém, não valia a pena pensar em ir embora.” Contudo, seguiram-se momentos de tensão, com diversas guerras. “Vários grupos lançaram o caos na cidade. Mataram, incendiaram carros com pessoas lá dentro…”, recorda.
Foi então que começou a pensar, com a família, em ir embora dali. Mas apenas provisoriamente. “Julgámos sempre que aquilo seria transitório. Fomos para África do Sul, que estava cheia de pessoas de Moçambique, mas só pudemos ficar durante um mês. Depois tivemos de regressar.” E o clima em Moçambique não tinha mudado.
Decidida a ficar em Moçambique, fez contrato com o Governo e voltou a dar aulas na cidade de Trigo de Morais. “Não encontrei lá ninguém. Todas as minhas colegas já tinham ido embora. Mas eu estava decidida a ficar. E se era para ficar era para assumir tudo.” Aprendeu todas as músicas revolucionárias, fez jornais de parede onde afixou tudo aquilo que os seus alunos faziam contra o colonialismo e a favor da independência. Mas havia muito ódio e desejo de vingança, conta Emília Marques. “Sujeitámo-nos a isso. Era uma guerra racial que já se desenvolvia há muito tempo, mas nós não nos apercebíamos. Foram tempos terríveis, que me deixaram marcas profundas.”
Foram inúmeros episódios de desconfianças. E isso, juntamente com o clima de insegurança que vivia, fez com que tomasse a decisão de dizer adeus à terra que a viu crescer. Mas todas as vivências de Moçambique continuaram bem presentes. Durante os primeiros tempos em Portugal viveu “aterrorizada”, conta. “Cheguei cá com a ânsia de pôr todos aqueles problemas de lado, de encontrar paz.”
Quis organizar a sua vida e concorreu a diversas escolas na região. Deu aulas na Gândara dos Olivais e na Martinela, em Leiria, e também em São Bento, em Porto de Mós. Mas Emília Marques queria a sua escola, os seus alunos. Concorreu, então, às vagas para ficar efectiva. E foi assim que, durante quase 25 anos, leccionou na escola primária da localidade de Vale Sumo, no concelho de Leiria.
Hoje, dedica-se à pintura. Já realizou diversas exposições e tem aulas para aprender as técnicas que ainda não domina. Está também ligada ao Museu Etnológico do Freixial, em Leiria, onde faz visitas guiadas.
“Hoje, ficam as saudades dos alunos. Dos que deixei lá, porque eram diferentes, e destes de cá, que me fazem chorar quando os encontro.” Emília Marques viveu anos muito “intensos”, afirma. “Acho que vivi dois anos num só. Foi uma vida que me somou anos, onde eles não existiam.”