Texto originalmente publicado na edição em papel número 2072 do JORNAL DE LEIRIA, de 28 de Março de 2024
Está na biblioteca inaugurada pela direcção a que preside quando diz “li poucos livros na minha vida, mas continuo a achar que a leitura é muito importante” – e, naquele espaço de ideias e emoções consagradas em texto, entusiasma-se a descrever a escrita “tão forte, tão frontal” de Miguel Torga e, sobretudo, a intemporalidade do poema “Urgentemente”, de Eugénio de Andrade. “Sempre actual. Senti necessidade de o ler durante a pandemia e depois começou a guerra e tive de o ler outra vez. É urgente o amor”. Carlos Franco, que lidera a Associação Cultural e Recreativa da Comeira, antigo jogador da equipa amadora de futebol sénior, entretanto desactivada, é um dos responsáveis pelo improvável número alcançado no sábado, 23 de Março: 100 sessões de Poesia ao Serão, com noites dedicadas a mais de 70 poetas portugueses, de Sophia de Mello Breyner a José Régio, entre muitos outros. De 15 em 15 dias, sempre à quarta-feira, excepto em momentos especiais – e uma centena de convívios à volta da poesia, ao longo de cinco anos e meio, parece, certamente, um momento especial.
“Escolhemos um poeta para cada sessão e a partir daí as pessoas trazem poemas para ler”, explica o dirigente da colectividade da Marinha Grande, onde, desde 2011, os órgãos sociais já concretizaram obras avaliadas em 400 mil euros. Tipicamente, há uma conversa sobre o poeta em destaque, e, por vezes, também se dá voz a criações originais. “Quem quiser ter essa ousadia, traz um poema”.
Desde o último fim-de-semana, está disponível a segunda colectânea Poesia ao Serão, que reúne mais de 70 poemas de 20 participantes na iniciativa da ACR Comeira, coordenada por Aires Rodrigues, Maria João Gomes, Mariana Moreira e Adélio Amaro, presidente do Cepae – Centro de Património da Estremadura.
Desde o arranque, a 7 de Novembro de 2018, “com nove pessoas”, o grupo praticamente triplicou (com a maioria dos membros acima dos 50 anos de idade) e vários eventos ocorreram fora de portas, incluindo os encontros com Manuel Alegre em São Pedro de Moel e António Carlos Cortez no Museu Joaquim Correia, e a colaboração com o colectivo Sísifus na actividade de poesia de rua com microfone aberto realizada recentemente em meados de Março. Na ACR Comeira, em 2023, esteve o investigador Ricardo Belo de Morais, a falar sobre Fernando Pessoa.
Palco para todas as idades
Entretanto, esta quinta-feira, 28 de Março, pelas 21:30 horas, estreia para o público geral no auditório da ACR Comeira o espectáculo Os Lusíadas com uma Perna às Costas, com dramaturgia de Suzanna Rodrigues, cenografia de André Santos, música de Fábio Jerónimo e interpretação de Cristóvão Carvalheiro, Mafalda Canhola, Maria Botas e Nuno Geraldo, a prolongar a parceria com o Teatro do Botão (e, antes, com o Teatro à Solta, entretanto extinto). No último domingo de cada mês, e até ao final de Maio, a companhia residente na colectividade da Marinha Grande, onde decorrem os ensaios, apresenta novas produções na ACR Comeira – Olhó Abril e O Flautista são as próximas – e pelo meio dinamiza turmas de teatro para crianças – “começaram com sete, oito, neste momento têm 15”, realça Carlos Franco – e, desde o ano passado, para adultos: “Já levámos uma peça ao palco, Trovas em Collants, sobre o rei D. Dinis”.
Um movimento transformador
Mas há mais: aulas de costura e bordados, jogos de bocia, treinos de judo e jiu jitsu, grupos de pilates, fitness e zumba, e o acolhimento do Café Memória que reúne cuidadores informais e técnicos numa partilha de experiências relacionadas com a doença de Alzheimer. O arraial que acontece em cada Verão também está a mudar: além de frango assado e enguias, agora oferece teatro e contos e não se limita “à música pimba”.
“Uma coisa que aprendi é que não pode ser uma mudança radical, tem de ser passo a passo”, comenta Carlos Franco. “Abrir uma biblioteca em 2022 é a coisa mais difícil que pode existir. O mais fácil é dar às pessoas aquilo que elas ouvem todos os dias. E continuar a mantê- -las… embrutecidas, talvez”.
Em Outubro e Novembro, numa organização com o Teatro à Solta, a ACR Comeira promoveu quatro debates sobre “O Poder Transformador da Cultura”, em relação com a saúde, a inclusão, a educação e o desenvolvimento do território. “Ou esta casa tem algum poder transformador ou então não vale a pena”, diz o presidente da ACR Comeira. “Acredito que tenha, aliás, o movimento associativo é um movimento transformador, sempre foi”. E conclui: “Tudo aquilo que eu dou, é amor. Todo o meu tempo, eu dou”.
Nas redes sociais da ACR Comeira, as palavras solidariedade, justiça, fraternidade e lealdade surgem em destaque junto ao emblema com forma de coração. O arranque da colectividade (que sucedeu ao Grupo Desportivo da Comeira) remonta a 1970 e os primeiros estatutos são da autoria de Diamantino André, que expandiu o clube de futebol para uma associação cultural e recreativa. Hoje já não há jogos – só as balizas e um campo meio pelado meio “ervado” – mas o símbolo continua a mostrar um livro – e maior do que a bola de futebol.