Paco é um trapezista do circo. No alto da grande tenda de lona, pintada de vermelhos, amarelos e brancos, voa pelos ares, calculando, com precisão milimétrica, a velocidade e o local onde as cordas estarão a cada momento, com a certeza de um dogma religioso. Para ele, o arriscado mundo dos saltos mortais, duplos, triplos e quádruplos, é tão sólido como o granito de que são feitas as montanhas.
Cego desde que se conhece como homem, vive fechado no seu universo. Os ecos do mundo que o rodeia chegam- lhe aos ouvidos nos vivas da multidão e na suavidade da aragem que lhe sustenta o voo de trapézio em trapézio, e no gáudio do público.
A habilidade no trapézio fazem dele um mito que se entrelaça pelos ares do picadeiro. Porém, Paco, que vive nos EUA, dos anos 30 do século XX, “saltibamcando” de terra em terra, sabe que tudo está para mudar e, na sua cabeça, dialoga consigo próprio sobre a realidade que se vive fora do ventre de lona, entre as luzes e sequins e as invejas e dias de fome.
O enredo da peça Acrobata Cego, um texto original do dramaturgo de Leiria Constantino Alves, é uma metáfora para a vida, carregada de personagens insatisfeitos, compostos por imperfeições. E, se tudo correr como planeado, deverá estrear nos palcos, no primeiro trimestre deste ano.
Da caneta para o palco
Um dia, Constantino Alves cansou-se da previsibilidade da caneta na mão, buriladora de histórias e personagens para outros encenaram e interpretarem em palco. Sentiu no corpo a vontade de, ele também, dirigir um corpo de actores e actrizes. É que, pela sua cartilha, os textos de teatro são guiões para algo que é necessário construir em cena, apropriando- se de partes das personalidades de cada um dos actores.
“As personagens não existem por si só, precisam de encenador, actores e muita gente para, realmente, atingirem o seu desígnio”, diz o dramaturgo. Tirou da gaveta aquela peça que gritava por si e exigia ser levada ao palco. Socorreu-se do mundo digital e lançou, nas redes sociais um desafio a pessoas, com e sem experiência de teatro, para que a si se juntassem e aceitassem o desafio de comungar da vontade de encenar o Acrobata Cego.
O objectivo é, então, montar, com o auxílio de um grupo de voluntários, provenientes de áreas artísticas variadas, o espectáculo no primeiro trimestre do ano. Mesmo sem ainda ter fechado o elenco, os actores estão autorizados a trabalhar a peça, em verdadeira simbiose com o autor.
O objectivo é dotá-la de organicidade e pode mesmo implicar re-escrevê-la, de acordo com a personalidade do executante em palco. "As pessoas gostam de ser protagonistas e é por isso que o fenómeno das redes sociais tem uma grande expressão. Acredito que estamos num tempo em que as pessoas envolvidas também devem interagir e dar um pouco de si."
Se o cinema e a televisão permanecem uma metáfora para a Alegoria da Caverna, o teatro, nas últimas décadas, saltou do palco, quebrou a quarta dimensão e os grilhões, segurando o público pela mão, puxando-o para a luz e fazendo-o entrar em cena, ao lado dos actores.
O teatro goza de uma dimensão metafísica e de uma irrepetibilidade que não existem noutra qualquer disciplina artística. Sempre que o pano sobe, é diferente.
A caixa escura é um espaço próprio onde tudo pode acontecer e onde se retrata a condição humana. É um espaço onde se convive e se testemunha. A dificuldade de levar O Acrobata Cego à cena é grande e o autor admite que terá de pensar, inclusive, a essência da identidade do teatro para o fazer.
"O teatro tem várias dimensões e é uma prova de vida. Sempre que assisto a uma peça, sinto que estou vivo." O sangue está quente nas veias, os cheiros activos, o calor e o frio manifestam-se no veludo do escuro. Há até um espaço social, do restante público, que interage e partilha todas as emoções.
A peça necessita de oito pessoas para ser levada à cena, mas o ideal seriam 12, correspondentes a cada uma das personagens. A principal dificuldade, até agora, é encontrar o protagonista, o acrobata cego, Paco.
O papel principal ainda não foi atribuído, uma vez que Constantino Alves procura alguém que já tenha alguma "tarimba" na arte de palco. O dramaturgo e encenador reforça, por isso, o [LER_MAIS] convite a todos os que pretendam embarcar neste projecto. Quem se quiser juntar ao grupo, deverá contactar o autor, pessoalmente, ou através da sua página no Facebook “Constantino Mendes Alves”.
Acrobata cego contra o palhaço maneta
Mas quem é Paco, o acrobata que, mesmo sem luz no olhar, consegue parar o coração a quem o vê, voando de corda em corda, no alto da grande tenda de circo? É a estrela da companhia. É por causa dele e da sua arte que os espectadores acorrem ao circo.
A acção acontece no início da Grande Depressão, num circo, onde se notam sinais de um crescente declínio das artes circenses.
Os números e as atracções que agradavam ao público estão a mudar, tornando-se mais imediatos, decalcando o que se passa na sociedade da época, com o aparecimento do cinema falado e a popularização da telefonia.
Os grandes números deixam de estar baseados em encenações clássicas, focadas nos artistas, como os acrobatas e os trapézios, para passarem a ser simples atracções como o gorila ou a mulher barbuda.
"O circo e as pessoas estão ameaçadas. A peça foi escrita em 2008-2009, no início da crise, e acabei por criar um paralelismo com o que estava a acontecer em Portugal e no mundo", explica Constantino Alves. Atribuiu ao protagonista a cegueira porque queria mostrar alguém que está fechado num mundo que não é metafísico, mas que elementos dessa realidade, e que, no meio de toda a decadência de fim de ciclo, é um vencedor.
É uma peça que coloca em causa muitas ideias pré-concebidas e assume a primazia do intelecto sobre a vontade, num acto tomista. Dentro da grande tenda do circo há ainda outras questões em jogo, como as que levaram à própria Grande Depressão, a natureza humana, o aparecimento do nazismo e do fascismo.
Há também ódios latentes, como aquele que é destilado pelo palhaço maneta, que despreza Paco e que é uma metáfora para o individualismo e para a ideia de vencer a todo o custo. Constantino optou, também aqui, por dar uma imperfeição à personagem, como forma de aumentar a densidade psicológica do drama que se desenrola ante os olhos dos espectadores.
O clímax atinge-se quando Paco é dispensado do circo porque o público já não o quer nem à sua arte. O Acrobata Cego é trocado por um número mais básico, simples e imediato.