Um surto de gripe A após a comemoração do Carnaval infectou cerca de seis dezenas de jovens na região de Leiria. Um pouco por todo o País têm sido registados casos de doentes com as diferentes estirpes da gripe, numa altura em que era habitual surgirem os problemas alérgicos. A descontinuidade do uso das máscaras pode ter sido uma oportunidade para os habituais vírus e bactérias voltarem a atacar.
A Direcção-Geral da Saúde pondera eliminar as máscaras em locais fechados a partir de Abril, e a descontinuidade do uso desta protecção individual pode tornar-se numa oportunidade para os habituais vírus e bactérias voltarem a atacar. “Algum dia temos de abandonar a máscara e temos de começar a correr riscos. A máscara é sempre uma barreira de transmissão dos micróbios. O facto de termos andado com máscara durante estes dois anos interrompeu sem dúvida a transmissão da Covid-19, mas também de outros micróbios que nos infectavam”, afirma João Frade, investigador na Unidade Multidisciplinar de Investigação Biomédica da Universidade do Porto.
Para o também docente na Escola Superior de Saúde do Politécnico de Leiria, o uso contínuo de máscara teve influência na redução da gripe sazonal normal, que todos os anos atingia a população. Com a sua retirada, “naturalmente que a incidência dessas doenças poderá aumentar”.
Coordenadora da saúde pública do Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) do Pinhal Litoral, Odete Mendes admite que o deixar cair a máscara facilita a maior transmissão do vírus da gripe. “O influenza [provoca a gripe sazonal] é um dos vírus mais comuns, mas depois existem vários sorotipos, cada um com as suas especificidades.
O Instituto Nacional Ricardo Jorge está a fazer o estudo da sorotipagem dos casos mais recentes, pois pode haver uma espécie diferente daquela que está incluída nas vacinas”, adianta ao JORNAL DE LEIRIA.
A especialista sublinha que todos os anos as vacinas contra a gripe são diferentes, precisamente porque o vírus tem muitas mutações. “A população mais jovem, não vacinada, é que está a ser atingida. Numa altura em que se deixa o uso da máscara há uma tendência para aumentar a transmissão da gripe sazonal”, acrescenta.
Ana Paula Rodrigues, médica de saúde pública, justificou também, em declarações à agência Lusa, que esta subida de casos de gripe pode estar relacionada com os dois últimos invernos – em que praticamente a população não contactou com os vírus da gripe devido às medidas de protecção e ao confinamento – assim como o alívio das medidas contra a Covid-19 e ao “frio fora de época” em Março. Apesar de estar a haver uma circulação de vírus da gripe mais elevada do que costuma ser em Março, não é tão elevada como se observa nos meses de Dezembro, Janeiro e Fevereiro, disse Ana Paula Rodrigues, sublinhando que, provavelmente, Portugal irá ter “uma epidemia de gripe mais tarde este ano”.
Salvato Feijó, pneumologista e director clínico do Centro Hospitalar de Leiria, adianta ao JORNAL DE LEIRIA que a incidência da gripe era uma “situação previsível”, que se justifica pelo “alívio da protecção individual na sociedade em geral”. A retirada das máscaras contribuiu para o “aumento da actividade viral”, nomeadamente a “habitual que é própria dos outonos e invernos em Portugal”, associada a “um aumento viral ligado ao coronavírus”.
“Nada que não estivesse dentro das previsões”, diz Salvato Feijó, ao reconhecer como “anormal” o surto de gripe A que se verificou em muitas zonas do País e que “não seria completamente normal” nesta altura do ano. Segundo o médico, o pico que se verificou entre os dias 2 e 6 de Março e que “duplicou o número de utentes na urgência respiratória” teve como responsável o “grupo A e o subtipo H3, que é menos agressivo”.
Máscaras caem em Abril
O pneumologista acrescenta que a Direcção-Geral da Saúde vai avançar para um alívio das medidas a partir de Abril, o que irá desproteger ainda mais a população. No entanto, o médico acredita que as complicações virais só surgirão no próximo Outono e Inverno, que serão “duros na actividade viral em geral”. Quanto ao SARS-CoV-2, Salvato Feijó considera, “sem ser uma opinião baseada em algo técnico”, que a nova variante Omicron 2 poderá ainda fazer subir os casos em Abril.
“Setenta por cento da população foi contagiada em Portugal pela Omicron 2, que é ainda mais transmissível do que a anterior. Ainda virá a chuva – ‘Abril águas de mil’ – e algum frio, mas a tendência será para diminuir até ao próximo Outono. Aí Portugal deverá ter deixado a máscara e vamos ter um Inverno difícil, embora com menor gravidade”, estima o director clínico.
O pneumologista alerta, contudo, para o impacto que o aumento dos casos terá no Serviço Nacional de Saúde. “A afluência vai aumentar nos hospitais e não sei ser haverá capacidade instalada para responder a essa procura.” Ana Paula Rodrigues constatou ainda que as pessoas também estão agora “mais alerta” para o aparecimento de sintomas respiratórios devido à Covid-19. Também há neste momento testes que fazem em simultâneo o rastreio à gripe e ao SARS-CoV-2, havendo por isso “um maior conhecimento da comunidade em geral e também dos profissionais de saúde da ocorrência desses casos”, observou.
No laboratório responsável pela vigilância epidemiológica da gripe, a virologista Raquel Guiomar acrescentou à Lusa que nesta altura o período epidémico já estaria a finalizar. “No entanto, devido a uma circulação muito reduzida nos últimos dois anos e a outras dinâmicas que foram também implementadas”, bem como o levantamento de medidas de protecção individual “o vírus está agora a ter a oportunidade de ser transmitido pessoa a pessoa”, precisou.
Segundo a responsável pelo Laboratório Nacional de Referência para o Vírus da Gripe e outros Vírus Respiratórios, a população “mais susceptível” à infecção pelo vírus da gripe nas últimas semanas tem sido as crianças. “Esta é uma nova dinâmica dos vírus respiratórios que temos que acompanhar muito de perto porque sabemos que estes dois últimos anos da pandemia interferiram de certa forma também com a circulação do vírus da gripe e de outros vírus respiratórios”, defendeu. Manuel Carvalho, coordenador da Unidade de Saúde Familiar D. Dinis, em Leiria, confirma que tem havido uma maior incidência na procura pelos serviços de saúde por adultos e crianças com sintomas relacionados com problemas respiratórios e gripe, situação que afirma já estar à espera, com a retirada das máscaras.
Durante dois anos, a população esteve protegida, mas Odete Mendes garante que não se verificou perda de imunidade. “Simplesmente, andávamos de máscara e estávamos protegidos de todos os vírus cuja transmissibilidade é por via aérea”, constata, explicando que a gripe sazonal fora de tempo também se explica pelas alterações climáticas.
“Já não temos as estações do ano muito divididas e certinhas. Assiste-se a frio e a chuva na Primavera”, exemplificou, condições favoráveis à proliferação do influenza.
Salvato Feijó acrescenta que a imunidade está relacionada com a exposição nos infantários, creches, nos liceus e em convívio social. “Quando utilizamos a máscara criamos uma barreira. Protegemo-nos, por um lado, mas depois ficamos dependentes de muitos vírus e das suas mutações”, acrescenta.
Por isso, o pneumologista aconselha as pessoas mais vulneráveis, nomeadamente quem possui comorbilidades e os mais idosos, a vacinarem-se contra a gripe. “O recomendado é a partir dos 65 anos, mas nesta fase sugiro que se abra uma excepção para vacinar as pessoas acima dos 50 anos, pelo menos, nos dois próximos invernos”.
Apesar de admitir que o sistema imunitário precisa de ser estimulado para ficar “de certa maneira mais musculado”, João Frade também afirma que as respostas imunitárias das pessoas não diminuíram por andarem demasiado protegidas. “Estes vírus [gripe] são extremamente mutáveis e em cada ano apresentam-se de forma diferente. Se o vírus é novo não é pelo facto de termos andado com máscara que a nossa imunidade ficou prejudicada, mas porque o nosso corpo não o conhece”, esclarece.
Covid-19, uma gripe “normal”
Os especialistas acreditam que a Covid-19 vai ser “mais uma gripe” que vai funcionar de forma idêntica à gripe sazonal, já conhecida pela população. “O ideal seria que desaparecesse, mas os dados indicam que a Covid-19 veio para ficar, com a mortalidade e o internamento hospitalar a diminuírem, como já se verificou. É provável que se torne numa doença paralela à gripe sazonal e, sem fazer o teste, nem se sabe qual se vai ter”, adianta João Frade.
O investigador admite também a possibilidade de se estar positivo para o SARS-CoV-2, mas os sintomas serem provocados pelo influenza da gripe sazonal, que não se testou. “É uma coisa que pode perfeitamente acontecer, assim como estar infectado simultaneamente com as duas.”
Odete Mendes apela, por isso, para a vacinação de todos contra a Covid- -19 e para a gripe sazonal, nos grupos mais vulneráveis. “A retirada das máscaras tem sido feita de forma gradual, como deve ser. Mas não nos podemos desleixar. Há uma tendência endémica para a Covid-19, até porque os vírus se vão adaptando ao meio ambiente e ao nosso organismo. Irão tornar-se mais frequente em determinados períodos do ano e menos graves”, explica.
No entanto, a médica de Saúde Pública adverte que a taxa de incidência de Covid-19 a 14 dias no ACeS Pinhal Litoral ainda é elevada e superior à da região Centro. No mês de Março foram registados 9.134 casos, o que representa 20% de todas as novas infecções da região Centro.