Garantida a marca de qualificação directa para os Jogos Olímpicos de Paris2024, quais são as expectativas para esta prova?
Acima de tudo, poder estar presente lá já é uma vitória pessoal incrível, porque já fui várias vezes. A primeira vez que fui aos Jogos Olímpicos tinha 21 anos, era muito jovem. Na edição seguinte, parti o perónio e não consegui competir. Na minha terceira edição, era em tempo de Covid, passei imenso tempo a treinar sozinha. Agora, vou participar nos Jogos Olímpicos a trabalhar como médica. Ou seja, todas as edições foram especiais. É um evento que, para muitos dos atletas, é difícil ir uma vez, e eu vou pela quarta vez. Isso tem de me deixar muito orgulhosa da carreira que fui construindo e do quanto me dediquei ao atletismo. Gostava muito de ir à final olímpica, mas toda a gente quer ir à final. Vai sempre depender do dia, da forma como estamos.
Fez cair um recorde português, que lhe deu a vitória no disco, em casa, na Taça da Europa de Lançamentos. O que quis dizer aquela reacção?
Foi um alívio brutal. Há uma música do Moniz Pereira, a pessoa que me levou para o meu antigo clube, que me diz muito, é uma letra muito emocionante. Chama-se ‘Valeu a Pena’. E eu já estava há oito anos a trabalhar para bater um recorde pessoal com o meu treinador, o Júlio Cirino da Rocha. Há oito anos, época após época, com o sonho de fazer valer a pena todas as horas a que me dedico e que, de certa forma, ponho muito sacrifício e luta. Estava à espera que um resultado bom aparecesse. Quando ele saiu, emocionei-me mesmo muito, porque valeu a pena. Foram muitas horas de dor, com dúvidas. Eu sempre priorizei o atletismo, então saber que ainda bem que tive o foco aqui, foi a razão de me ter emocionado tanto. Ainda bem que não desisti antes deste dia ter aparecido, porque tive muitas oportunidades queme fizeram equacionar a minha permanência no desporto. Ainda bem que me mantive cá.
A saída do Sporting aconteceu em 2022, sendo que já estava no clube desde 2009. Qual a razão desta ‘separação’?
Comunicaram-me que já não havia lugar para mim na equipa e tinha de sair. Era o fim do meu contrato e não quiseram renovar. Não estava à espera, mas, por outro lado, como houve uma mudança da direcção do atletismo, sabia que isso poderia acontecer. Como tinha sido finalista europeia esse ano, pensei que mantivessem o apoio até aos Jogos Olímpicos de 2024. Foi isso que, antes da nova direcção técnica, tinha falado com eles. Como tinha assinado um contrato só de um ano, isto poderia acontecer. Não houve uma quebra de contrato. Efectivamente, o contrato terminou e eles não renovaram. Eu já estava há 14 anos no clube.
Como foi começar uma carreira ‘a solo’, depois de tantos anos com o apoio de um clube de grande dimensão?
Eu tornei-me uma atleta profissional porque, em 2009, o professor Moniz Pereira convidou-me para ir para o Sporting. Fui convidada pelo melhor treinador de atletismo que Portugal já viu e foi das pessoas que mais me inspirou. Quando a Irina, de 17 anos, foi contratada por alguém como o Moniz Pereira, para um clube como o Sporting Clube de Portugal, ficou muito feliz e sentiu que poderia fazer cumprir o sonho dela, de ser atleta profissional. A partir do momento em que estive tantos anos num clube desta dimensão, sei o valor que tenho. Sabendo o valor que tenho, seria muito difícil ter outro clube que me oferecesse as mesmas oportunidades. Para representar um clube que não me pudesse financiar, mais valia estar como atleta individual. Graças a Deus tenho a minha independência financeira e também o apoio da Federação e do Comité Olímpico de Portugal, pela bolsa olímpica. Sabia que, mantendo um bom rendimento, conseguia pelo menos manter a bolsa. Encarei esta questão de ser atleta individual com naturalidade, porque estou num desporto que me permite não estar filiada a nenhum clube, então teria a liberdade de finalizar o meu curso de medicina, um dos meus grandes objectivos.
Teve durante muitos anos o Paulo Reis como treinador. Como foi mudar de técnico?
Cresci com o Paulo Reis, trabalhei com ele 12 anos. Tinha um método que assentava muito na disciplina, no trabalho e no foco. Ele trouxe-me valores desportivos bastante bons. Mas depois de ter fracturado o perónio no Rio de Janeiro, senti que a forma como os dois estávamos em termos desportivos, mas também na relação pessoal, não era a melhor. Senti que era a altura ideal de fechar um ciclo e começar outro. Não fazia sentido continuar a trabalhar com ele se eu não estava feliz. Como também não havia muitas opções de treinadores de lançamento do disco em Portugal, aquela que me pareceu mais viável foi o Júlio Cirino da Rocha. Apesar de estar a viver nos Açores, ele entendeu a importância de ter uma carreira profissional além da carreira desportiva. Ele já tinha levado uma lançadora do disco a três jogos olímpicos, a Teresa Machado, e já tinha batido um recorde nacional com ela. Acreditava que o conhecimento dele me pudesse também fazer lançar longe. Apesar de ter demorado muito tempo, porque andámos sete anos a treinar à distância, quando nos juntámos, este ano, todo este trabalho acumulado acabou por dar frutos. Foram oito anos muito penosos. Em termos de personalidade, cresci imenso. Uma das melhores mudanças da minha vida foi ter começado a trabalhar com o Cirino.
Apesar das várias conquistas acumuladas ao longo dos anos, também tem uma carreira marcada por lesões, que a impediram de competir. Como é que se lida com a frustração destas paragens forçadas nos momentos em que se está em alta?
Este tipo de lesões é como diz o ditado popular, são os ossos do ofício. Os atletas quando treinam em alto rendimento sabem que, mais cedo ou mais tarde, podem passar por um momento em que se lesionam e têm de parar, abrandar e lidar com isso. Tive um psicólogo desportivo que me ajudou a superar esta fractura do perónio, depois dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Ter feito este trabalho com ele, de reconstruir a minha confiança e acreditar que era uma fase má que ia passar, foi muito importante. A terapia, não só quando há frustrações, mas até quando as coisas também correm bem, é importante. Sempre que nós temos muitas emoções na nossa vida, é fundamental saber lidar com elas. Quando a saúde mental está bem, as coisas em termos físicos e desportivos também para lá caminham.
Nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016 sofreu uma grave lesão. Pensou em desistir?
Tive momentos em que pensei: “O que é que eu estou aqui a fazer? Porque é que continuo no atletismo quando claramente há tanta coisa má pela qual tenho de passar?”. Mas também sabia que não fazia sentido terminar a carreira com uma perna partida. Não era um final feliz para a minha história (risos). Houve outros momentos em que também já tinha pensado em desistir. Mas, por outro lado, quando eu paro de treinar, é que percebo porque é que me faz tão bem.
Não há muitas mulheres discóbolas em Portugal. O que é preciso fazer para que se aposte mais nesta disciplina do atletismo?
Uma das coisas que poderia ajudar era introduzir o lançamento do disco nas escolas, no desporto escolar. A verdade é que não é muito fácil, em termos de espaço, teria de se fazer num campo ao ar livre, com discos de borracha. Se houver muitas pessoas que saibam o que é o lançamento do disco – que eu não sabia quando entrei para o atletismo – pode ser que cative alguém. Sinto que para haver mais sinais de alerta para disciplinas de nicho, que é o meu caso, tem que se ganhar medalhas internacionais, para haver mais comunicação social a falar destas modalidades. Quando houve as medalhas da Patrícia Mamona, o triplo salto, que também era uma disciplina de nicho, começou a ser mais falado e os miúdos começaram até a saltar, a fazer o jogo dos três pauzinhos nas praias e na escola. As medalhas têm o poder de trazer mais atenção sobre a modalidade, mas a verdade é que tem de haver outras formas de passar esta informação e de se falar sobre estas modalidades com as crianças. Ainda temos uma cultura desportiva muito unidireccionada.
Os atletas olímpicos reclamam mais apoios. Sente que não há um reconhecimento devido face às conquistas que os atletas portugueses têm alcançado? Recentemente, li uma entrevista do presidente do Comité Olímpico, José Manuel Constantino, em que ele disse que a quota de apoio para o desporto todo é inferior à quota dada para a Federação Portuguesa de Futebol. Havendo menos apoio, haverá menos reconhecimento, menor possibilidade de divulgar os outros desportos e modalidades. Isto vai muito da cultura desportiva. Se somos um país que aposta tanto no desporto-rei, é normal que não haja tanta divulgação e conhecimento dos outros.
Entre as inúmeras medalhas e recordes conquistados, existe algum de que se orgulhe mais?
Sim, a do Festival Olímpico da Juventude Europeia, em 2007. Foi uma medalha de ouro que ganhei quando era juvenil e que tornou este sonho possível. Foi uma medalha que me fez pensar ‘Se calhar, sou capaz de conseguir ir aos Jogos Olímpicos’.
Como é ser atleta de alta competição enquanto se estuda num curso de medicina e, agora, enquanto se exerce a profissão?
Enquanto estudava tinha um horário diferente que tenho agora, enquanto trabalho. Como tenho a sorte de trabalhar no hospital Santo Espírito, da ilha Terceira, que tem um ambiente de trabalho incrível e com colegas fantásticos, consigo conciliar muito bem a minha carreira profissional com a desportiva. Acaba por ser uma transição até bastante tranquila. Já sendo médica e a lidar com pacientes, acaba por haver alguma responsabilidade extra, mas tenho conseguido conciliar bem. Tenho de treinar sempre depois do trabalho. Está a ser bastante positivo viver cá.
Como está a correr o Internato de Formação Geral?
Está a correr bastante bem. Agora estou na rotação de cirurgia e estou a gostar muito. Tenho ido para o bloco operatório e tenho visto os pacientes. Uma das coisas que comentei com as minhas colegas, quando fiz o recorde pessoal, foi “Não estava nada à espera, estive de urgência na quarta-feira, das 8 às 20 horas, e estive no bloco operatório na quinta-feira o dia todo”. Estava cansada, não estava à espera de conseguir.
Com 33 anos, já planeia o fim da carreira na alta competição, ou ainda sente que tem mais para dar?
Aos 33 anos, nos lançamentos, ainda não se está em fim de carreira. Por exemplo, a atleta francesa Mélina Robert-Michon, tem 44 anos. Tem uma carreira bastante longa, sempre em alto rendimento. Ver alguém que ainda gosta tanto de lançar com 44 anos e duas filhas, é uma inspiração. Vai depender sempre do fim das épocas do balanço que se faz. Hoje, já penso um bocadinho diferente do que pensava no início da época e agora que fiz um recorde pessoal, se calhar posso andar aqui mais alguns anos. Tudo depende. A minha vida não é só o desporto, também tenho de pensar nas outras vertentes. Faço uma análise época a época.