Os últimos dados da consultora Informa D&B revelam que em 2020 a criação de novas empresas caiu para 37.558, uma redução de 24% face ao ano anterior. É uma descida preocupante?
É naturalmente uma descida preocupante, na medida em que significa menos iniciativa empresarial, menos investimento privado e menos projectos de empreendedorismo. Ora, tudo isto penaliza a criação de valor e emprego pela nossa economia. Mas este menor dinamismo empresarial é explicado pela pandemia e, em particular, pelas restrições às actividades económicas impostas pela necessidade de conter a propagação do vírus. Não era expectável que em 2020 se criassem mais empresas do que em anos anteriores. Tanto mais que os sectores mais dinâmicos dos últimos anos, como a hotelaria e a restauração, são precisamente os mais afectados pela crise sanitária.
Acredita que 2021 poderá ser um ano de nascimento de um maior número de empresas? Porquê?
Sim, acredito que haverá uma retoma da iniciativa empresarial e do investimento privado já este ano, o que se traduzirá na criação de mais empresas em relação a 2020. A vacinação em larga escala contra a Covid-19, e consequente desagravamento da pandemia, vai permitir o regresso da liberdade económica e estimulará fortemente a procura e, por arrasto, o investimento. De resto, os níveis de poupança dos portugueses estão altos, o que acabará por se traduzir em mais consumo e investimento. Logo, em mais actividade económica. Além disso, é previsível que, no segundo semestre do ano, as empresas e os empreendedores tenham já acesso à nova geração de fundos europeus, podendo, por esta via, serem alavancados novos negócios. Importa, contudo, criar um ambiente mais favorável à iniciativa e ao investimento, o que passa, por exemplo, por estímulos fiscais, apoios à capitalização, eficiência e celeridade administrativa e incentivos à transição digital e energética.
O espírito empreendedor, a vontade de arriscar num negócio próprio, nasce com a pessoa ou aprende-se?
Para se ser empreendedor, não basta ter os traços de personalidade adequados, como a determinação, a perseverança, a abnegação, a disposição para o risco ou o inconformismo. Embora sejam importantes, estas características pessoais, e por vezes inatas, não garantem, à partida, um desempenho de sucesso na actividade empresarial. O actual nível de sofisticação e competitividade da actividade empresarial faz com que o conhecimento e a capacidade para traduzir esse conhecimento em gestão, inovação e tecnologia sejam os principais atributos dos empreendedores de sucesso. Depois, há também que saber criar e mobilizar equipas, conhecer o mercado e ter uma visão estratégica do negócio.
[LER_MAIS] Quais são as principais preocupações que os jovens empresários têm feito chegar à associação?
Os jovens empresários estão preocupados, desde logo, com o agravamento da pandemia e consequente prolongamento do confinamento, que perspectiva nova queda do PIB no primeiro trimestre deste ano. O encerramento das actividades consideradas não essenciais, a forte redução da mobilidade e o ambiente geral de desânimo causam, naturalmente, apreensão nos jovens empresários, cujas empresas estão a ser penalizadas pelos entraves à actividade produtiva ou comercial e pela forte quebra da procura. Outra grande preocupação são as dificuldades burocráticas e a lentidão no processamento administrativo dos apoios à economia, que só produzem realmente efeitos se chegarem com rapidez à tesouraria das empresas. Há também preocupação com o agravamento do endividamento, motivado pela adesão às linhas de crédito e às moratórias fiscais e de crédito. Este diferimento das obrigações pode vir a constituir, mais à frente, um sério problema para a tesouraria das PME, que, quando forem chamadas a pagar, estarão ainda descapitalizadas pelos efeitos da pandemia e a procurar retomar em pleno as suas actividades.
Como vê as medidas que têm sido anunciadas para apoiar as empresas a enfrentar os impactos da pandemia?
Vejo com agrado as novas medidas de apoio às empresas anunciadas pelo Governo, na medida em que contribuem para a preservação da capacidade produtiva, dos postos de trabalho e da liquidez de tesouraria das PME. Aliás, a ANJE viu serem atendidas algumas das suas propostas de apoio às PME, designadamente o reforço dos subsídios a fundo perdido no âmbito do programa Apoiar e o alargamento aos sócios-gerentes dos incentivos à retoma progressiva. É também motivo de satisfação a intenção do Governo de acelerar a execução do programa Apoiar. Parece-me, no entanto, que se poderia ter ido um pouco mais longe nos apoios. Faltam instrumentos mais robustos e ambiciosos de capitalização das PME, tendo em vista o relançamento do investimento. São necessários também mais benefícios fiscais, mais estímulos ao consumo, mais seguros de créditos à exportação com garantia estatal, mais formação e reconversão profissional e mais incentivos ao desenvolvimento dos factores críticos de competitividade: transição digital, inovação, sustentabilidade, talento, branding e internacionalização. Além disso, é absolutamente crucial que os novos apoios cheguem rapidamente à tesouraria das PME, através de processos administrativos descomplicados e não onerosos.
Um dos objectivos que assumiu quando ocupou a liderança da ANJE, há cerca de um ano, foi o apoio nos processos de transformação digital das empresas. Esta aposta foi reforçada, tendo em conta o novo paradigma imposto pela pandemia?
Sim, sem dúvida. As medidas de contenção da pandemia, em particular o confinamento, aceleraram significativamente a transição digital das empresas. Houve um extraordinário esforço do nosso tecido empresarial para comercializar bens, prestar serviços, organizar processos, gerir tarefas e interagir com clientes remotamente, recorrendo às tecnologias digitais. O desafio seguinte é, uma vez reposta a normalidade económica, não perder o ímpeto transformador e os ganhos tecnológicos alcançados nos últimos meses, tendo em vista a evolução das nossas empresas para modelos de negócio com uma maior componente digital. Neste sentido, é necessário um enorme esforço de qualificação tecnológica do capital humano, tarefa que a ANJE, pela sua experiência na formação empresarial e na mentoria de negócios, pode desempenhar com proficiência. Há que apoiar as empresas a introduzirem tecnologias digitais nas suas cadeias de valor, circunstância que obriga a mudanças nos modelos de negócio, nos processos internos e na relação com os clientes. Mas tal só é possível com programas de capacitação digital ajustados às necessidades das empresas, de modo a dotá-las de recursos humanos que consubstanciem massa crítica tecnológica. Acresce que, no actual contexto de crise pandémica, a qualificação digital é uma forma de preservar o emprego em sectores muito penalizados pela contracção da procura interna e externa. Trata-se de uma oportunidade de reconverter profissionais com competências reduzidas ou obsoletas, adaptando-os às exigências tecnológicas da indústria 4.0.
O que pede hoje aos jovens o mercado de trabalho?
O mercado de trabalho dá hoje tanto valor às hard skills (competências técnicas e conhecimentos científicos) como às soft skills (competências pessoais e sociais). Entre as hard skills, há actualmente a preferência pelas áreas das tecnologias da informação, indústria e logística, ciências da vida e da saúde, gestão, contabilidade e finanças, direito, recursos humanos e marketing e vendas. No que se refere às soft skills, os empregadores procuram jovens com qualidades de liderança (capacidade de decisão e mobilização, determinação, integridade, responsabilidade, facilidade de comunicação e de resolução de conflitos) e que sejam dotados de criatividade, pensamento crítico, adaptabilidade a várias funções e ambientes, gosto pelo trabalho em equipa, mobilidade e espírito cosmopolita. O mercado de trabalho actual valoriza as competências técnico-científicas com elevado grau de especialização e que implicam uma formação académica mais longa e aprofundada. Ao mesmo tempo, os empregadores procuram jovens que, além das hard skills, tenham características pessoais que se encaixem na cultura das empresas e que acrescentem valor às suas dinâmicas internas.
Está ainda enraizada a noção de ‘emprego para a vida’ ou as novas gerações têm perspectivas e ambições diferentes?
Creio que as novas gerações já não perfilham o princípio do “emprego para a vida”, não só porque têm uma mentalidade mais aberta à mudança, à experimentação e ao risco como as condições do próprio mercado de trabalho não permitem pensar no longo prazo. O rápido avanço tecnológico obrigou a uma reconfiguração do mercado de trabalho, que passou a ser mais flexível e volátil.