Já passaram cinco anos, mas Ana Alves ainda tem muito presente as “borboletas na barriga” que sentiu quando a tia lhe ligou a comunicar que iriam acolher um menino da Guiné que vinha ser operado em Coimbra, ao abrigo de um protocolo entre os dois Estados lusófonos.
Seria o início da ligação da designer, residente em Fátima, às ‘famílias de coração’, coordenadas actualmente pela associação ANA – Acolher, Nutrir e Amar, que recebem crianças guineenses com patologia cardíaca grave enquanto são tratadas em Portugal. Dessa rede, fazem também parte Lídia Carvalho e Fernando Valente, proprietários do restaurante Matilde Noca, em Leiria, e Ana Graça e Jorge Claro, residentes na zona de Pombal.
“É um projecto de amor, em que recebemos muito mais do que damos”, assume Ana Alves, que teve conhecimento da iniciativa durante as visitas a uma prima enquanto esta esteve com o filho internado no Hospital Pediátrico de Coimbra. “Via aquelas famílias com os bebés ao colo nos corredores e quis saber mais”, conta a designer, que já acolheu oito crianças.
A primeira, o Anderson, chegou em Maio de 2019, com dois anos, e ficou quatro meses. O receio inicial – “são crianças doentes que vêem para ser tratadas” -, foi sendo superado com a relação de afecto criada entre ambos e com o apoio da família, com Ana Alves a reconhecer que é também aos seus que vai buscar forças para superar “o vazio que fica” a cada despedida. São, diz, momentos “sempre dolorosos”, amenizados pela consciência de “estar a fazer diferença” na vida destas crianças.
Depois de Anderson, Ana Alves acolheu mais sete crianças, entre as quais Maimuna, que esteve com ela quase um ano, em plena crise de Covid-19. “Foi assustador, porque ela vinha mais debilitada e acabou por ter um início de uma infecção pulmonar. Tranquei-me com ela em casa durante dias, para a proteger ao máximo”, recorda.
O processo médico correu bem e Maimuna regressou à Guiné, onde já se reencontrou com Ana, que, todos anos, integra uma das três missões que a equipa médica de cardiologia do Pediátrico de Coimbra faz naquele país para rastreio, diagnóstico e acompanhamento.
Também Lídia Carvalho já esteve na Guiné, onde reencontrou crianças que acolheu desde 2019, quando se associou ao projecto, que conheceu através de Ana Alves. “A única forma de ser ‘família de coração’ é através de outra família”, explica Filomena Almeida, presidente da associação ANA, sublinhando que se trata de uma participação voluntária, cabendo a quem acolhe assegurar a alimentação, as deslocações ao hospital e outras necessidades básicas das crianças.
Receio de tomar banho
Lídia Carvalho recebe o JORNAL DE LEIRIA segurando no colo Ádama, a menina de dois anos que a família acolhe actualmente e que, tal como outras crianças que já recebeu, sofre de teratologia de Fallot, doença cardíaca que impede o coração de bombear a quantidade de sangue necessária.
‘Dádá’, como Ádama é tratada, chegou em Agosto passado e aguarda ainda operação. Até lá, recebe do casal todo o conforto necessário, fazendo desta a sua família de coração. Tal como o fez Bália, a primeira criança que Lídia e Fernando acolheram, então, com seis anos. “Foi a mais difícil”, reconhecem, explicando que, devido à Covid-19, a menina ficou 11 meses com eles. “Chorou durante dois meses. Não sabíamos o que fazer”, recorda Lídia. Ainda contactaram a mãe da criança, “para a tentar acalmar”, mas não resultou.
Com o passar do tempo Bália foi-se adaptando à nova realidade. Também as dificuldades iniciais associadas às diferenças culturais e sociais – tal como acontece com muitas das crianças acolhidas, Bália falava crioulo e chorava cada vez que ia tomar banho, porque não tinha chuveiro em sua casa – foram sendo ultrapassadas e a despedida revelou-se dura, sobretudo, para os quatro filhos do casal.
“Eles envolveram-se muito com ela. A sua partida foi-lhes bastante dolorosa”, conta Lídia, assumindo que ponderaram não se manter no projecto. Mas, o incentivo dos filhos e a vontade de ajudar a “curar corações” falou mais alto.
Depois de Bália, vieram mais oito crianças, incluindo Ádama, que ainda não tem data de regresso. Quando acontecer levará, como todos os outros, um álbum com fotografias do tempo passado em Portugal.
Além dessa recordação, o casal mantém ligação com algumas das crianças, a quem paga a escola e envia dinheiro para prendas de Natal e de aniversário. É, dizem, uma forma de as ajudar nas “muitas dificuldades” que enfrentam, mas também de manter a ligação e de não quebrar o ciclo de acolhimento.
“Não é trabalho. É felicidade”
Ana Graça e Jorge Claro acolhem, neste momento, o primeiro menino, o Daniel. Ana conta que, quando conheceu o projecto, ficou “fascinada” e não largou a ideia até chegar ao contacto com elementos da direcção da associação ANA, a quem transmitiu a vontade de aderir, expondo, no entanto, a dificuldade de não poder ficar permanentemente no hospital enquanto durasse o internamento, porque tem mais dois meninos – de um e de dois anos – a seu cuidado como família de acolhimento da Segurança Social. “Quando me disseram que há voluntários que fazem esse acompanhamento no hospital, disponibilizámos-nos logo para participar no projecto”.
O Daniel, que acaba de fazer dois anos, chegou a 19 de Dezembro e deve ter sido operado esta quarta-feira, já depois do fecho desta edição. O esperado é que, dentro de um mês, tenha nova consulta e, se tudo estiver bem, regressará à Guiné-Bissau. Ana e Jorge não querem, para já, pensar nesse momento. Preferem centrar-se no presente e na alegria que o menino veio trazer à família.
“É mais uma criança para cuidar. Mas vamos-nos ajustando. Não é trabalho. É felicidade”, afirma Ana Graça, instrutora de ioga, contando que Daniel a acompanha no seu trabalho. Quando tal não é possível, tem o apoio das amas das outras crianças e de um casal vizinho que, sempre que necessário, fica com o menino. “Trata-os por tios e gosta muito deles”, partilha Ana, mãe de três filhos, já adultos, sendo que Jorge tem também um filho de outro casamento.
“Poder ajudar crianças como o Daniel, impactar nas suas vidas, que são difíceis, pela doença e pelas condições de vida no seu país, preenche-nos”, assumem Ana e Jorge, que estão disponíveis para receber mais crianças vindas da Guiné. Mesmo antecipando que a partida de Daniel, que descrevem com um menino “maravilhoso”, será difícil. “Amar é saber deixar partir”, conforta Fátima Lourenço, vice-presidente da associação ANA.
Mais de 200 crianças tratadas desde 2018
Desde 2018, mais de 200 crianças com patologia cardíaca grave, provenientes da Guiné-Bissau, foram tratadas em Portugal ao abrigo de acordos de cooperação na área da saúde entre os dois Estados. Durante a sua permanência no País, são acolhidos por ‘famílias do coração’, uma rede de voluntários coordenada pela associação ANA – Acolher, Nutrir e AMAR.
Filomena Almeida, presidente da ANA, explica que o processo – designado por “evacuações sanitárias” – envolve um conjunto de parceiros nacionais e internacionais, tanto da parte clínica como social, com o objectivo de dar resposta a crianças com diagnóstico de patologias graves, sem possibilidade de tratamento e/ou cura na Guiné-Bissau.
No ano passado, o processo envolveu 56 crianças com diagnósticos de “não tratáveis na Guiné”. Destas, 54 foram tratada em Portugal e duas em Espanha. A maioria estava diagnosticada com algum tipo de cardiopatia e foi tratada na Unidade Local de Saúde de Coimbra (ULSC), tendo previamente beneficiado das consultas das missões médicas do serviço de Cardiologia Pediátrica dessa instituição. Quase metade dos beneficiários tem até cinco anos. Segue-se a faixa etária dos seis aos dez anos, com 13 crianças, e escalão dos 11 aos 15 anos, com 12.
A componente social, que trata do acompanhamento e acolhimento desses meninos e meninas, é coordenada pela ANA, em parceria com a AIDA, uma ONG espanhola que actua na Guiné-Bissau. Além de gerir a bolsa de famílias voluntárias, a ANA dispõe de uma casa, localizada em Ribamar, na Ericeira, que acolhe crianças com doença oncológica, a maioria, e outras patologias graves, que vêem receber tratamentos em Portugal. Neste caso, os pacientes contam com a presença de um familiar.
A ANA tem também em funcionamento uma casa em Bissau, onde acolhe crianças órfãs ou socialmente desfavorecida e, juntamente com uma equipa médica da ULSC e dos Institutos Português de Oncologia de Lisboa e de Coimbra, vai regularmente à Guiné-Bissau para acompanhar as crianças já tratadas e para a realização de rastreio das patologias identificadas. A formação de médicos guineenses, feita em Portugal, é outra das apostas, com os parceiros do projecto a acreditarem que, dessa forma, será possível dar um melhor acompanhamento às crianças intervencionadas.