É com total à vontade que Capêla entra na sala de actividades do lar da Misericórdia de Porto de Mós. A receber a pequena cabra estão cerca de duas dezenas de utentes das valências de estrutura residencial para idosos (ERPI) e do centro de dia, que se preparam para mais uma sessão do projecto Espalhar Sorrisos, desenvolvido pela Associação Solidária e Agrícola Cantinho dos Animais, que, uma vez por semana, promove a interacção entre idosos e diferentes animais, com o objectivo de oferecer momentos de alegria e boa disposição.
Numa das mãos, Vera Soares, voluntária e promotora da iniciativa – recebida de “braços abertos” pela Misericórdia e por outras instituições sociais e escolas do concelho -, segura a trela com Capêla. Na noutra, leva duas gaiolas, uma com o coelho Benny e outra com duas sedosas do Japão, espécie de galinha, que irão despertar grande curiosidade ao longo da sessão.
Mas é para Capêla que inicialmente se voltam as atenções dos utentes. ‘Mariazinha’ bate com as mãos nos joelhos, numa tentativa de que a cabrinha lhe suba para o colo. “Anda cá minha linda”, diz a mulher, dirigindo-se ao animal, que se aproxima e se põe em posição para que lhe afaguem a cabeça.
“Todos gostamos de miminhos. Até os animais”, constata Quirina Ladeiro, educadora social, que ao longo da sessão vai fazendo perguntas aos utentes, alguns deles já com problemas de demência, numa tentativa de “reactivar” memórias e competências.
“É uma actividade que tem imensos benefícios, principalmente com as pessoas que sofrem de algum tipo de demência. O toque e a interacção com os animais ajuda-os a redescobrir memórias, já que muitos deles sempre tiveram contacto com o mundo rural”, aponta a técnica, frisando que uma das preocupações da instituição “é respeitar a história de vida” dos utentes e “toda a bagagem que trazem”.
Viagem ao passado guiado por Capêla
Um dos que viaja ao passado através da presença de Capêla é João Varatojo Carreira. A pequena cabrinha faz Jonhy, como é tratado por todos na instituição, regressar a Alcaria, a aldeia onde nasceu há 95 anos, e aos seus tempos de juventude, quando calcorreava vales e montes a pastar cabras. “Cheguei a ter mais de 100. E sabia os nomes de todos aqueles cabeços”, conta, recordando os dias em que descia até ao lugar da Pragosa e as mulheres lhe ofereciam pêras, maçãs ou uvas, em agradecimento pelos “serviços” prestados pelo chibo do rebanho.
“Praticamente todas as casas tinham uma cabrita ou duas. Levávam-nas ao chibo para que ficassem prenhas”, relata Jonhy, que esteve emigrado nos EUA durante 40 anos, regressando à terra natal após a reforma. “Aqui, tratava das cabras. Lá, eram os carros”, refere, numa alusão ao trabalho de bate-chapas ao qual de dedicou grande parte da vida, enquanto vai tirando as medidas a Capêla. “Está grande para a idade [seis meses] e já tem cornitos”, diz, dirigindo-se a Vera Soares, que, entretanto, retira o coelho Benny da jaula. Será, no entanto, por pouco tempo, porque o animal revela-se inquieto. “Não está nos seus dias”, reconhece a voluntária.
Depois de uma breve interacção com os utentes, o coelho regressa à gaiola e a atenção vira-se para as sedosas, uma espécie que, assumem, nunca tinham visto. Vera Soares explica que se trata de um galináceo que, em vez de penas, tem pêlo “como os gatos”. “A carne e a pele são pretas, mas o sabor é como o de uma galinha normal. Os ovos são pequenos, semelhantes aos dos pombos e podem chocar uns 18 de cada vez”, descreve a voluntária, que passa a sedosa de colo em colo, para que os utentes lhe possam tocar, despertando sorrisos em muitos deles.
“É isso que se quer”, diz, feliz, Vera Soares. Já com a sessão terminada, a fundadora da Associação Solidária e Agrícola Cantinho dos Animais conta ao JORNAL DE LEIRIA que o projecto nasceu de uma situação vivida pelo filho, que “sofreu de bullying na escola”. “O seu refúgio e seu abrigo eram os animais. Era essa interacção que lhe punha sorrisos na cara. Daí o nome do projecto”, partilha.
A essa experiência, Vera Soares juntou uma outra – a visita que fazia aos avós que estavam no lar, durante as quais se apercebia que “muitos idosos estavam a olhar para o vazio” – para montar o projecto, que nasceu há cerca de um ano, a partir do espaço que a família tem no Arrimal, “com mais de 100 anos.”
“Tentamos chegar às pessoas, aos lares, aos infantários e às creches, e espalhar sorrisos. A partir dos animais, conseguimos criar uma relação. Principalmente nos idosos, os animais despertam sensações, emoções e memórias que estavam adormecidas”, assinala Vera Soares, que, em cada sessão, procura também “ouvir” os utentes.