Os católicos preparam-se para celebrar o nascimento de Cristo. Como seria Jesus se viesse hoje à Terra?
A mensagem seria exactamente a mesma. É a mensagem que o Papa Francisco tenta transmitir: que Deus é bom, é Pai/Mãe, ama a todos, mesmo aqueles que ninguém ama. O núcleo da mensagem de Jesus está no Deus bom. Mas há quem não esteja interessado nela, porque se Deus é bom eu também tenho de ser, se Ele não se vinga, eu também não me posso vingar. Já no tempo de Jesus houve quem não estivesse interessado, nomeadamente os sacerdotes do Templo que viviam de uma religião que oprimia o povo e que fizeram uma coligação com Pilatos, representante do Império, e Jesus foi crucificado. Os discípulos e as discípulas que O tinham acompanhado dispersaram, mas lentamente, e a começar por Maria Madalena, reflectindo sobre tudo o que Jesus tinha dito e feito, o seu comportamento, o modo como se relacionava com Deus e como morreu, fizeram a experiência avassaladora de fé de que Deus não O abandonou no nada da morte. Ressuscitou. Ele é o Vivente, e foram anunciar ao mundo que Jesus está vivo como desafio e esperança para todos.
E que vendilhões Jesus expulsaria hoje do Templo?
Os corruptos. O que vai por aí de corrupção, de ladrões, deixando tanta gente a viver na desgraça! Mas há mais. É uma vergonha o que se passou no Banco do Vaticano. O Papa Francisco quer pôr ordem e transparência nos dinheiros. Espero que consiga. O próprio escândalo da pedofilia também tem que ver com dinheiro. A Igreja francesa vai, e bem, arranjar 20 milhões de euros para indemnizar as vítimas dos abusos. É uma forma de tentar reparar essa tragédia. Mas a pedofilia tem de acabar. Os católicos não dão dinheiro à Igreja para que esta lave os seus pecados.
A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) acaba de anunciar a criação de uma comissão para investigar os abusos sexuais na Igreja. Fez o que tinha de fazer?
Fez o que já se tinha feito na Alemanha e em França. Tenho muita confiança no actual presidente da CEP e estou convicto de que a comissão dá garantias de independência e que terá acesso aos documentos, fará o seu trabalho e apurará a verdade.
Escolheu para título do seu mais recente livro “O Mundo e a Igreja – Que futuro?”. No que à Igreja diz respeito, qual a reforma mais premente?
É urgente que cada católico – a começar pelo Papa, cardeais, bispos, padres, eu próprio – se converta, a partir desta tomada de consciência: ‘Eu estou na Igreja porquê? A mensagem de Jesus interessa-me, a mim?’. Depois, a Igreja, como qualquer grande organização, tem de ter ministérios, ou seja, serviços, que têm de ser isso mesmo: serviços. A Igreja não pode ser uma hiper-organização de poder e de poderes. A Igreja está no Mundo para servir, seguindo o exemplo de Jesus, que disse: “Eu vim, não para ser servido, mas para servir”. Tem de ser uma organização que sirva as pessoas e a própria transmissão da mensagem. Não podemos continuar a usar linguagem completamente antiquada, que as pessoas não entendem. Por exemplo, no Credo continua a dizer-se: “Creio em Jesus, filho unigénito de Deus… gerado, não criado, consubstancial ao Pai”. Eu percebo, estudei teologia. Mas o que é que isso diz às pessoas?
Defende também que não se deve continuar a falar do pecado original. Alguma mãe acredita sinceramente que o seu filho ou filha foram gerados em pecado e que andou nove meses com o pecado dentro dela?
No quadro da evolução, o pecado original não é pensável. Podemos é dar-lhe sentido. A criança nasce inocente, foi concebida em amor, mas vem para um Mundo onde já há pecado. Pode ser contaminada, como acontece a um não fumador num espaço com fumadores. O baptismo serve para dizer àquela criança que foi sempre filha de Deus e, por isso, queremos comprometer-nos, a começar pelos pais, a que não seja contaminada pelo mal.
Fala da simplificação da linguagem, mas há correntes na Igreja que pedem o regresso da missa em latim…
E de costas. Isso não faz sentido nenhum. Estamos ali para celebrar a alegria que Jesus nos dá, lembrando o que Ele fez e quem é para nós. O que está subjacente nesta coisa de querer a missa em latim e de costas é o poder, mesmo que de forma inconsciente e subtil. Ou seja, querer mostrar que só o padre, o bispo, o monsenhor, o cardeal falam com Deus, porque sabem latim. Veja-se o que isto significa de [LER_MAIS]subordinação dos fiéis. Como padre, tenho de perguntar a mim próprio se estou nesta missão porque a mensagem de Jesus é importante, em primeiro lugar, para mim. Se é boa para mim, vou transmiti-la aos outros.
No seu livro aponta “o poder e os conluios com os poderes” como a maior ameaça da Igreja. Quer especificar?
A maior tentação do seres humanos é o poder. E porquê? Porque somos carentes. Veja-se o exemplo das campanhas eleitorais. A corrida que se faz, ao que se sujeitam os candidatos, para tentarem conquistar o poder. Como disse Henry Kissinger, o poder é o maior afrodisíaco. Faz com que, de algum modo, colmatemos as nossas deficiências. A própria consciência da mortalidade nos impele na busca do poder, o querer sempre mais poder. No limite, atingir o poder total com o qual mataríamos a própria morte. Há esta ilusão. O poder mais perverso é o poder na Igreja.
Porquê?
Porque é um poder exercido em nome de Deus. Ora, Jesus veio para servir. É preciso fazer o contraponto entre poder e autoridade. No Evangelho, Jesus diz que veio para servir. Ele não tinha poder formal. Nem sequer era vogal de junta de freguesia. Mas o Evangelho diz que ensinava com autoridade. É disso que a Igreja precisa. Autoridade vem do latim augere, que significa aumentar, isto é, fazer crescer. Ao ouvir Jesus, as pessoas sentiam-se com mais dignidade, mais reconciliadas, com mais esperança e confiança na vida. A Igreja tem de transformar o poder em serviço e em autoridade, dando o exemplo.
Defende o fim do celibato obrigatório. Não sendo um dogma de fé, por que é que Igreja teima em manter esta regra disciplinar?
O próprio Francisco já disse que o celibato não é dogma de fé. Alguém me há-de mostrar que na Última Ceia Jesus ordenou sacerdotes. Durante os primeiros tempos, na Igreja não havia sacerdotes. Jesus tinha discípulos e discípulas. A Eucaristia era celebrada em casa de um cristão ou de uma cristã com uma casa maior, onde as pessoas se reuniam e celebravam. Era o dono ou a dona da casa que presidiam à celebração. Com o tempo, os cristãos foram acusados pelos pagãos de serem ateus, porque não ofereciam sacrifícios. Então, houve a transformação da Eucaristia em sacrifício e, a partir daí, foi preciso o sacerdote ordenado.
É, então, com o aparecimento do sacerdócio ordenado que se começa a associar o sacerdócio e o celibato?
O sacerdócio exige “pureza” sexual. Com a celebração diária, os sacerdotes nunca podiam ter relações sexuais. As mulheres, por causa da impureza ritual, foram excluídas da ordenação sacerdotal. Digo: na Igreja deve haver ministérios ordenados, serviços e funções, exercidos por homens ou por mulheres, por toda a vida ou durante algum tempo, e em dedicação exclusiva, com celibato assumido livremente, ou não, mas sem ordens sacras. O celibato obrigatório só apareceu no século XI com o Papa Gregório VII e só se impôs à Igreja com o Concílio de Trento, no século XVI. O celibato obrigatório tem também a ver com o feudalismo: aparece para não dispersar as riquezas da Igreja.
A Igreja vai ser obrigada, pela força das circunstâncias, a rever a obrigatoriedade do celibato?
O celibato obrigatório deve cair, não por não haver padres, mas por uma questão de princípio. O primeiro Papa, São Pedro, era casado. Pelo menos, tinha sogra. São Paulo, que era celibatário por opção, pergunta se não podem ir evangelizar, levando as mulheres. O mesmo se passa em relação às mulheres. No princípio houve mulheres cristãs a presidir a celebrações. Uma religiosa que vive na Amazónia disse num Sínodo dos bispos que, como não há padres, elas celebram baptismos e casamentos e uma até assumiu que ouve confissões, mas que não dá a absolvição. Mas porque é que não pode absolver? No Evangelho de São João, Jesus diz aos discípulos: ‘Aqueles a quem perdoardes os pecados serão perdoados.’ Se estivesse para morrer e não houvesse um padre, pediria para me confessar a uma cristã amiga, esperando a absolvição.
A prática religiosa na Europa caiu vertiginosamente nas últimas décadas. Que responsabilidades podem ser assacadas à Igreja?
Há razões relacionadas com maus exemplos e com a linguagem. As homilias são, frequentemente, um desastre. São secas, não têm força nem são iluminantes. Depois, a Igreja oficial não escuta os jovens. O problema vai agravar-se porque, por causa da pandemia, não houve socialização religiosa das crianças e dos jovens. Claro que há também razões relacionadas com a própria sociedade em que vivemos: uma sociedade materialista, hedonista e que vive na busca do ‘deus’ dinheiro. Precisamos de pensar.
Dedica, aliás, um capítulo do seu livro ao tema “Tempo para pensar”.
Pensar significa, no latim, ‘pesar’ razões. Daí vem também o penso sanitário, que cura. Pensar cura. Precisamos de pensar, tanto dentro da Igreja como da sociedade. Vivemos um tempo em que se pensa pouco. Passamos a vida a ‘dedar’. Li recentemente um livro de um neurocientista francês, Michel Dermurget, A fábrica de cretinos digitais, onde se mostra que, por causa da cultura do ecrã, está a registar-se uma diminuição do Quociente de Inteligência (QI). O cérebro ainda não tem melhor processo para aprender do que ler. A leitura ajuda a estruturar uma personalidade. Com o ‘dedar’, corremos o risco de termos pessoas cada vez menos estruturadas e a saber menos.
“A Igreja tem de dar o exemplo e prestar contas”
Disse, em recente entrevista à TSF, que gostava que a Igreja em Portugal fosse “uma voz político-moral”. Por que diz isso?
O Papa Francisco é uma voz político-moral global reconhecida por todos. Jesus foi condenado como blasfemo religioso, mas também como subversivo político. O ser humano é, por natureza, político. Coisa diferente é a política partidária. Francisco pronuncia-se sobre os grandes problemas da sociedade e é uma voz escutada. Defendo em Portugal uma Igreja que deixe privilégios ou pseudoprivilégios, para ser uma voz político-moral. O País tem grandes problemas e a Igreja podia e devia – é também essa a sua missão – alertar para eles.
Em que áreas gostava que a Igreja tivesse uma voz mais activa?
Na corrupção. Mas para isso a Igreja tem de dar o exemplo e prestar contas. Os fiéis dão dinheiro e têm o direito de saber onde é aplicado. Também gostava que a Igreja fosse mais crítica em relação à educação, à família e às políticas de família e que levasse as pessoas à reflexão. A Igreja em Portugal podia ser iluminante.
Em que sentido?
Na Alemanha, por exemplo, há textos de bispos a partir do apoio e conselho de especialistas nos vários domínios. Portugal vai passar – já está a passar, embora as pessoas ainda não tenham tomado consciência disso – por uma crise muito grave. A Igreja podia ser essa voz político-moral iluminante. Na Igreja prega-se a bondade. O Evangelho diz que Deus é amor incondicional, mas também é inteligência e razão. A bondade sozinha pode não abrir caminhos. A razão sozinha poder ser cruel e mortal. Uma vida humana autêntica, a vida cristã e consequentemente a Igreja, só são verdadeiramente autênticas no cruzamento da inteligência e da bondade, do amor e da razão. A Igreja tem a obrigação de chamar a atenção para perigos e ameaças e apontar caminhos.
O Presidente da República vetou, pela segunda vez, a lei da eutanásia. Andou bem ou devia ter respeitado a decisão do Parlamento.
Tinha de vetar, porque o texto contém contradições.
Qual a sua posição em relação à eutanásia? Em algumas circunstâncias pode ser um acto de misericórdia?
Sou contra, porque, mesmo que a pedido, o Estado ficaria com mais um dever: matar. Aliás, há o perigo de entrar numa rampa deslizante. Veja-se o que está a acontecer nos Países Baixos com a abertura da eutanásia a doentes psiquiátricos crónicos, doentes com demência, etc., e, na Bélgica, até a menores… Por outro lado, é moralmente obrigatório evitar a obstinação terapêutica.
Este será o segundo Natal que o mundo vive em pandemia. Que sociedade gostava que emergisse desta crise?
Este podia ser o tempo para pensarmos na nossa fragilidade. Afinal, não somos omnipotentes. Um pensar são na morte não envenena a vida. Pelo contrário. Exalta a vida: viver quando? Agora. Por outro lado, dá-nos o sentido da existência, até do ponto de vista ético: frente à morte, tomamos consciência da distinção entre o que verdadeiramente vale a pena e o que não vale, entre o digno e o indigno, o justo e o injusto. Gostaria que este tempo de calvário, tão difícil, seja oportunidade para vivermos mais autenticamente e mostrar-nos que, afinal, podemos viver com menos. Por outro lado, há a tomada de consciência de que vivemos interdependentes: ou nos salvamos todos ou nos perdemos todos. Veja-se o exemplo das vacinas: até por uma questão de egoísmo esclarecido, é preciso ser generoso e vacinar todos.
É um grande admirador do Papa Francisco que, na semana passada, completou 85 anos. Qual a principal marca do seu pontificado?
A sua vida. Ele é hoje o líder político-moral mais amado e dos mais influentes do Mundo, porque é um cristão. Vive à maneira de Jesus, anda com quem ninguém anda, está com os mais pobres e abandonados. Faz apelo à fraternidade universal. A encíclica Fratelli Tutti (Somos todos irmãos) é um apelo ético-jurídico-político a favor de um novo horizonte para uma Humanidade verdadeiramente nova e transformada. Ele também quer transformar a Igreja, mas reconhece que “é mais difícil reformar a Cúria Romana do que limpar a esfinge do Egipto com uma escova de dentes”.
Nas últimas viagens, tem sido visível o cansaço do Papa. Acredita que ele poderá resignar, como fez Bento XVI?
Estou absolutamente convencido de que, se perceber que já não pode, resignará.
Que mensagem de Natal quer deixar?
Para um crente, o Natal é a palavra definitiva de Deus, dita a cada homem, a cada mulher, jovem, criança: “Amo-te”.