O Conselho Europeu aprovou recentemente um fundo de recuperação de 750 mil milhões de euros, no âmbito de um pacote total de 1,8 biliões de euros para investir na recuperação da União Europeia. São boas notícias?
São excelentes notícias, a três níveis: para a Europa, para Portugal e para a nova ordem mundial. Para a Europa, porque espero que seja o início de uma nova visão sobre o modelo europeu e sobre a ambição da União Europeia. Sou um europeísta ferrenho, portanto acho que foi muito importante. Para Portugal também, porque embora não tendo sido um País tão atingido pela pandemia como Itália e Espanha, vai também receber um conjunto de capitais que espero que sejam bem aplicados. Mas, sobretudo, acho que é muito importante para a ordem mundial, ou seja, para o posicionamento da Europa no mundo. A Europa tem estado sem unidade, e isto pode ser uma mensagem. Como se sabe, durante muitos anos Europa e Estados Unidos foram aliados importantes para criar uma ordem mundial. Isso acabou por falta de liderança na Europa, também pela liderança existente nos Estados Unidos e pelo crescimento da importância da China.
A pandemia, e a crise dela resultante, veio novamente mostrar divisões ente os países europeus, nomeadamente a propósito dos chamados eurobonds. O modelo económico e social europeu continua a fazer sentido?
O modelo económico e social europeu vai sair reforçado desta pandemia. O mundo mudou, os valores vão ter de mudar. Sou da época em que, quando andava no liceu em Leiria, se dizia ‘make love, not war’. Havia ideologias. Uns mais de um lado, outros mais de outro, defendiam-se ideias e valores. Isso veio-se perdendo nas últimas décadas, devido ao materialismo. A China é um forte capitalismo de Estado, a Rússia também. Com o fim do muro de Berlim e do confronto, os valores deixaram de ser tão importantes. A sociedade vai novamente ter de orientar-se por valores, valores de solidariedade, de sustentabilidade, orientação para o clima, menos desigualdade. Isso vai ser fundamental. Esta pandemia veio mostrar isso. Há muitos milhões de pessoas que estão desprotegidas, que não têm capacidade para sobreviver a este tipo e fenómenos, que podem acontecer mais frequentemente. Se não houver uma classe média forte, quem sofre são as empresas. Não se pense que os países vivem do topo da pirâmide. Os países e as empresas vivem da classe média. Quanto mais tempo estou fora da Europa mais acredito no modelo europeu.
O que tem faltado à Europa?
Talvez o alargamento tenha sido rápido de mais. Mas o que tem faltado à Europa são líderes carismáticos, que tenham visão e que consigam construir uma narrativa sobre essa visão, que consigam comunicar e fazer aderir o povo europeu a essa visão. Khol, Miterrand e outros eram realmente grandes líderes. Eram visionários e às vezes até um bocadinho ambiciosos, mas conseguiram implementar as suas ideias. Parabéns a [Angela] Merkel, que é uma grande líder. Tem estado muito virada para dentro, mas agora mostrou uma grande coragem. Merkel e [Emmanuel] Macron foram os grandes arquitectos desta mudança e há ainda muita coisa que podem fazer. São talvez os mais visionários e mais carismáticos. O eixo franco-alemão continua a ser muito importante.
Que impactos terá a saída do Reino Unido da União Europeia?
A saída do Reino Unido é uma pena. Foram momentos infelizes que originaram isto. É minha convicção que é uma saída não-saída. Ou seja, de algum modo ir-se-á encontrar uma forma de continuar a ter uma ligação muito forte com o Reino Unido. Acho que é uma saída mais jurídica e política, e talvez menos importante económica e socialmente. Porque [a saída] é má para o Reino Unido e para a Europa. O Reino Unido tem tido uma visão mais à frente e faz falta à Europa ter um país como este.
Como vê as medidas que o Governo português lançou para ajudar empresas e famílias a aguentar os impactos da pandemia? Devia, ou podia, ter feito mais?
O Governo não esteve mal. Claro que se pode sempre fazer mais e melhor. No início da pandemia devia ter-se feito chegar um pouco mais rapida- mente dinheiro às micro empresas e aos trabalhadores independentes, que perderam claramente [rendimentos]. Era muito importante que as pessoas e as empresas sobrevivessem, que mantivessem os postos de trabalho.
Aumento das insolvências e do desemprego é um cenário inevitável em Portugal nos próximos meses?
Vai seguramente haver mais insolvências e mais desemprego, mas não acho que seja tão traumático como foi em 2009, 2010 e 2011. A recuperação não vai ser em V – descida e logo subida -, será mais em U. Mas estou convencido que com os fundos que vamos receber da União Europeia, que espero que sejam bem utilizados, não vai ser traumático. E nós temos uma grande capacidade de resiliência, portanto acredito que vamos conseguir. Vamos ter desemprego e insolvências, mas acho que se pode recuperar no prazo de 12 a 24 meses.
De engenheiro a presidente da Roland Berger
Maceira, Leiria, e apesar de viver
boa parte do seu tempo fora de
Portugal garante que continua a
sentir-se “muito ligado” à região.
Licenciado em Engenharia pelo
Instituto Superior Técnico, é
também Mestre em Engenharia e
tem um MBA pela Universidade
Católica de Leuven (Bélgica) e
uma pós-graduação em
Estratégia Corporativa pela
Universidade de Stanford e
Insead. Iniciou sua carreira
profissional como engenheiro na
Construções Técnicas, depois
passou pela União Europeia,
ingressou de seguida na MDM
Investment Bank (JP Morgan e
Deutsche Bank) como director de
Corporate Finance. Em 1990
entrou na Roland Berger como
principal do escritório de Lisboa,
tendo desempenhado funções de
liderança e um papel na
expansão das estruturas de
vários países, nomeadamente
Portugal, Espanha, Itália e Brasil.
De 2000 a 2003 foi membro do
Conselho de Supervisão, antes de
se tornar membro do Comité
Executivo Global, em 2003, e ser
nomeado vice-CEO em 2004.
Reingressou no Conselho de
Supervisão de 2011 a 2013. De
Julho desse ano a 2016, foi
novamente Membro do Comité
Executivo Global. Actualmente é
presidente da Roland Berger,
responsável pelos mercados de
Portugal, Brasil, México e
Angola. Além disso, é professor
convidado actualmente
responsável pela cadeira de
Corporate Strategy &
Transformation da Nova School
of Business and Economics. É
ainda membro dos Conselhos da
Câmara de Comércio Portuguesa
no Brasil e da Câmara de
Comércio e Indústria Brasil-
Alemanha. Foi condecorado pelo
Presidente da República
portuguesa em 2006 com a
Ordem do Infante D. Henrique
“pelas suas contribuições
para o desenvolvimento
económico do país”
A economia pós-Covid assentará num tecido empresarial de características diferentes do actual?
A Covid está a ensinar-nos muitas coisas. Vai ser seguramente importante, e algumas já estão a fazê-lo, que as empresas façam evoluir os seus modelos de negócio. Aprenderam a desenvolver mais o e-commerce, aproveitaram para fazer a simplificação dos processos de negócio. Um cliente disse-me uma coisa muito interessante: ‘vou ter de fazer em cinco meses o que estava a pensar fazer em cinco anos’. Há uns anos, para reduzir custos tínhamos sempre de reduzir alguma coisa do lado do serviço. Hoje é possível fazer a reengenharia dos processos de negócio melhorando ao mesmo tempo a qualidade do serviço ao cliente. As tecnologias de digitalização permitem aquilo a que chamo ganhos de eficiência disruptivos. Ou seja, podemos reduzir processos e focar-nos naquilo que o cliente necessita e não naquilo que pensávamos que ele necessita. As empresas mais pró-activas vão acelerar esse processo de mudança dos negócios. Não me parece que a estrutura económica mude, porque isso leva anos, mas a pandemia é um ponto de partida para que isso venha a acontecer. Por outro lado, as empresas mais capitalizadas têm uma grande oportunidade para se consolidarem ou fazerem bons negócios, porque há activos que estão a preços relativamente baixos.
A pandemia veio colocar desafios acrescidos aos gestores…
É muito importante a capacidade de gerir equipas híbridas, que estejam em teletrabalho. Uma multinacional como a nossa, que está em 40 países, tem 90% dos colaboradores em teletrabalho. E a produtividade aumentou. Vamos voltar todos a estar sempre fisicamente nas empresas? Não. As pessoas aprenderam [a trabalhar de outra forma] e isso tem impacto na forma como as empresas se vão organizar. Há funções que não precisam de ser feitas nas empresas, podem ser feitas em outsourcing, ou a tempo parcial. O modelo organizacional das empresas vai-se alterar e a forma como se gerem os recursos humanos também.
Mas os empresários portugueses estão ainda muito ‘agarrados’ a um modelo organizacional que pressupõe terem as pessoas debaixo da sua vista…
É verdade. Mas agora apanharam um susto grande e isso vai criar um sentido de urgência para a mudança. Acredito que grande parte das empresas estão já a mudar, a encontrar novas formas de gerir. Isso permitirá reduzir as estruturas, melhorar os custos, trabalhar mais a nível internacional. Há aqui um grande potencial. E há uma questão muito importante para as empresas, que é como é que vamos transformar a crise numa oportunidade de mudança. Esta crise trouxe à evidência o quanto a economia portuguesa depende do turismo.
Faz sentido que assim continue ou é preciso apostar ainda mais na indústria de bens transacionáveis?
Temos uma vantagem comparativa no turismo, porque temos diver- sidade concentrada. Somos um país muito diverso, mas com pequenas distâncias. Temos um clima e uma gastronomia muito bons, temos segurança e um povo muito afável. Temos verdadeiramente vantagens comparativas, que não se podem perder. O turismo de valor acrescentado não se pode perder. Mas devemos aumentar o peso da indústria. Talvez uma indústria diferente, não tem de ser pesada, pode ser uma indústria de maior valor acrescentado. Mas temos de o fazer. Porque onde a inovação começa é na indústria. Têm de se criar clusters. Há já alguns inícios, que podiam ser mais desenvolvidos, como a aeronáutica. Somos um país inte- ressante para a indústria aeronáutica. A Boeing e a Airbus não têm quase nada em Portugal, pelo que seria importante criar clusters. É importante fortalecer a base industrial, sobretudo com indústrias lim- pas, com muita inteligência. E atrair muito investimento estrangeiro.
Somos um país atractivo?
Portugal é hoje um país fantástico para o investimento estrangeiro. Os executivos e os gestores adoram estar em Portugal, é um País seguro. Além de fortalecer a indústria, há também que fortalecer uma agricultura mais inteligente. Temos potencial de agricultura de nicho. No caso dos serviços, apostar em valor acrescentado. Devíamos ser, ainda mais, o grande centro de investigação e desenvolvimento da Europa. Temos capacidades para o ser. Costumo dizer que Portugal podia ser a Suíça do Sul. Acredito claramente nisso. Somos um país pequeno mas com boa gente, boas infra-estruturas. Temos de ter a visão e a ambição. Precisamos de um objectivo compelling, que seja difícil, para nos unirmos e irmos para a frente.
Mas continua a haver alguns custos de contexto que poderão afastar potenciais investidores, como a instabilidade fiscal…
Isso já melhorou muito. Não temos ainda o IRC da Irlanda, mas no aspecto regulatório Portugal é considerado um país muito estável e nos últimos [LER_MAIS]dez anos mostrámos isso ao mundo. A Roland Berger é alemã, tenho muito contacto com os alemães, que nos consideram os latinos mais germânicos, porque somos sérios, fazemos as coisas. Ao contrário do que muita gente defende, considero que os Vistos Gold são importantes para o País, para o investimento no imobiliário. Não querendo ser a Flórida da Europa, a verdade é que se conseguirmos manter centros de saúde de bom nível conseguimos atrair pessoas de nível económico elevado que querem vir viver a sua reforma aqui. Portugal podia ser um bom centro de private banking para atrair investidores.
numa oportunidade de desenvolvimento”
O estudo elaborado pela Roland Berger sobre a abertura da BA5 à aviação civil, apresentado em 2018, apontava para um potencial de tráfego no curto prazo à volta dos 620 mil passageiros por ano. A pandemia irá mudar este cenário?
Faria todo o sentido abrir a BA5 à aviação civil, porque temos o nicho muito interessante do turismo reli- gioso. Setenta por cento do movimento da base poderia ser para turismo religioso. Recebemos cinco milhões de turistas em Fátima, número que está acima de Lourdes e de Santiago de Compostela. O turismo religioso vai reforçar-se, não reduzir-se. A BA5 poderia também servir para viagens de negócios oriundas da Europa. A operação é viável porque já existe uma infra-estrutura, seria apenas precisa pavimentação da pista, para que levantem e aterrem aviões um pouco maiores. Seria também necessário um terminal e instrumentos de controlo e segurança. Que sejam 20 a 25 milhões de euros [de investimento]. Criaria uma dinâmica interessante, pelo facto de ser uma localização muito central.

Ajudaria a criar novas oportunidades para a região?
Sinto-me muito ligado à região, com a responsabilidade de tentar encontrar soluções. Leiria necessita de transformar esta pandemia numa oportunidade de desenvolvimento. A região tem um conjunto de activos que devia desenvolver mais. No pós-Covid, o turismo da região deveria ser muito mais potenciado. As pessoas já não querem só sol e mar, querem natureza, diversidade. Temo-la na região. Há uma grande necessidade de criar uma nova visão estratégica para a região. Essa visão tem de estar alinhada com aquilo que são as tendências do pós-Covid: sustentabilidade, protecção do ambiente. É aquilo que chamo gestão estratégica do território. Temos tradições fantásticas e não as vendemos. Temos um conjunto de activos, mas não sabemos fazer o seu mar- keting. Leiria tem de apostar claramente em ser uma região mais sustentável.
De que forma?
Leiria, e a região, tem de aspirar a um novo estádio de desenvolvimento. Reforço a questão da indústria. Sempre foi uma região de pequena indústria, que é importante, mas tem de diversificar. Há um factor muito importante, que é a investigação e desenvolvimento, no qual Leiria ainda investe pouco. É menos de 1% do PIB regional, quando deviam ser 2%. Esta ligação muito interessante entre Politécnico e indústria pode ser reforçada. Falta uma visão internacional na região, é pouco internacionalizada. E falta atrair mais investimento, seja nacional seja inter- nacional. Para isso precisamos de lideranças muito activas. Temos de encontrar formas de reter bons talentos na região.
Mesmo ao nível do turismo, temos de ser melhores…
Veja-se a Nazaré. É um diamante em bruto. O marketing das ondas grandes é fantástico, mas depois há coisas básicas, de urbanismo, de manutenção dos edifícios, que é preciso fazer. Outro exemplo: o Mosteiro da Baralha, obra fantástica, mas que tem poucos eventos. Como lhe dar mais conteúdo, mais valor? Os nossos vizinhos espanhóis fazem muito melhor marketing do território do que nós. Somos fracos nisso. Bilbao é um caso fantástico. Cidade velha, industrial, foi transformada numa cidade de serviços de valor acres- centado. A região de Leiria pode nos próximos dez anos posicionar-se de forma diferente. Mas o que aconteceu ao Pinhal de Leiria é indiscritível. Há grandes activos, falta valor para pôr em cima deles, conteúdo e vontade. Nalguns casos nem são precisos grandes investimentos, apenas ideias e organização. E seria bom que houvesse uma liderança, pública e privada, que fomentasse essa nova visão para a região