Coppélia é uma comédia de enganos estreada em 1870 em Paris que no terceiro acto inclui um dos mais famosos pas de deux da história do ballet: o casamento de Franz e Swanilda. As duas personagens voltam a ganhar vida em palco no próximo domingo, 16 de Junho, graças ao talento de António Casalinho e Margarita Fernandes, que regressam a casa para protagonizar uma noite única no Teatro José Lúcio da Silva com a Companhia de Ballet Clássico de Leiria.
Desde 2021, ano em que concluíram os estudos no Conservatório Internacional de Ballet e Dança Annarella Sanchez, em Leiria, e se estrearam numa nova etapa, exclusivamente profissional, ambos têm contrato com o Bayerisches Staatsballett, em Munique, António com o estatuto de primeiro solista (o segundo degrau mais importante na hieraquia da companhia, a seguir aos bailarinos principais) e Margarita no patamar imediatamente abaixo, o de solista.
Na Alemanha, em produções como Onegin de Jonh Cranko ou Alice no País das Maravilhas de Christopher Wheeldon, desenrola-se o capítulo mais recente do invulgar enredo que desde a infância os liga como por magia. Quando num dos períodos de tréguas da pandemia António prestou provas perante os decisores do Bolshoi de Moscovo, e também em Munique, Margarita acompanhou-o nas actuações em dueto – e, apenas com 16 anos de idade, um caso raro, garantiu a sua própria vaga.
“A formação completa-se sendo um bom partenaire. Contratam-te quando consegues fazer um bom pas de deux”, diz Annarella Sanchez ao JORNAL DE LEIRIA. É em 2011 que se escreve a primeira página da narrativa que hoje tem lugar nos teatros mais importantes. “Pensei: vou criar um grupo de ouro”. Além de Margarita e António, que se conheceram a dançar nas mesmas aulas quando contavam, respectivamente, seis e oito anos de idade, já se destacavam, por exemplo, Francisco Gomes (actualmente na Companhia Nacional de Bailado) e João Gomes (que está no NdB, de Brno, na República Checa), Margarida Gonçalves (hoje no DJKT, de Plzen, igualmente na República Checa) ou Laura Viola (que depois de se graduar ingressou no Queensland Ballet, de Brisbane, na Austrália).
“Havia muito talento e os pais sempre foram atrás de mim”, reconhece Annarella Sanchez. “Não quero que a minha filha seja uma experiência, mas quero que ela tenha a melhor informação”. Ou seja, os melhores professores e coreógrafos, muitos deles oriundos do estrangeiro, em especial de Cuba, onde continua vivo o ensino inspirado na tradição da escola russa.
De cão e gato a favoritos
Foi através da televisão que o resto do país descobriu o potencial que começava a emergir em Leiria. No entanto, quando o Conservatório Annarella Sanchez se revelou pela primeira vez ao público não especializado a nível nacional no programa Got Talent Portugal, exibido pela RTP, Margarita formava par com João Gomes, mas seria António Casalinho, a solo, a vencer a edição de 2017. “Muito bom como bailarino e como ser humano”, o mais brilhante aluno do “grupo de ouro” beneficiava de elogios e atenção em linha com as expectativas e com os prémios ganhos em Portugal e nos concursos internacionais, vários e desde muito cedo – Prix de Lausanne, Grand Prix de Beijing, Youth America Grand Prix, os mais relevantes. “Ela achou a vida toda que eu gostava mais do António do que dela”.
Margarita confirma o ciúme e a distância, apesar de muitas horas de convívio, na escola e em casa, com as respectivas famílias. Só recentemente a relação ganhou maturidade. “Deixámos de ser cão e gato a partir do momento em que começámos a dançar juntos”, comenta António Casalinho. A viagem já os levou ao New York City Center, nos Estados Unidos, ao Teatro Arcimboldi, de Milão, em Itália, ao La Seine Musicale, de Paris, França, ao Théâtre de Beaulieu, em Lausanne, na Suíça, ao London Coliseum, em Inglaterra, ao Artscape Theather, de Cape Town, na África do Sul, e a outras salas de espectáculos à volta do globo. Para quem os segue de perto, porém, é impossível esquecer a apresentação do bailado Giselle no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, ou Lago dos Cisnes, no Teatro José Lúcio da Silva, ambos os espectáculos com encenação de Maina Gielgud, coreógrafa que dirigiu importantes companhias na Austrália, nos Estados Unidos e na Dinamarca e que nos últimos anos tem colaborado com o Conservatório Annarella Sanchez em Leiria.
Os dias em Munique, território com milhão e meio de habitantes que é o Bayern e o Oktoberfest, mas também a Siemens e a BMW, são agora dias de cumplicidade e entreajuda. E de celebração do sucesso, como quando, em Janeiro de 2023, o director promoveu António de solista a primeiro solista. “Podemos contar com o outro para dizer a verdade”, resume Margarita Fernandes, 19 anos, dois anos mais nova do que António, que assinala: “Principalmente, quando temos de dançar algo em que temos de interpretar emoções é sempre mais genuíno quando é um com o outro. Claro que um bom artista tem de ser capaz de interpretar com quem estiver a dançar, no entanto, é mais fácil, é mais natural”.
Estrelas na televisão
Na Alemanha, acreditam que estão a colher os frutos de “tantos anos” a pisar o mesmo solo. “Passámos muito tempo da nossa vida juntos como colegas”, realça Margarita na conversa com o JORNAL DE LEIRIA. “Conseguimos prever a forma de o outro actuar, pensar”. E mais: “Permitimos um ao outro sermos mais perfeccionistas”. António afirma: “Pela confiança que temos, somos mais exigentes”. E conclui: “Foi isso que nos trouxe até aqui”.
A paixão que partilham é o sonho de uma vida e a vida em comum na Baviera em busca do gesto perfeito tem como pilar a capacidade de trabalho e de sacrifício, o preço a pagar pela graciosidade e postura diante da plateia. Numa reportagem do canal alemão ZDF, que sublinha a competência e a juventude dos dois portugueses, António não poupa nas palavras acerca de Margarita: “É realmente inteligente. Muito mais inteligente do que eu e muito sensível”. Ela devolve a gentileza e nota que ele “pensa antes de agir” e que ambos funcionam como se fossem “a mesma pessoa”. Na entrevista, partilham com os espectadores o “plano maluco” em que imaginam um horizonte ainda distante, com António a tornar-se director de uma companhia em Portugal e Margarita a dirigir a escola da instituição.
O céu é o limite? Provavelmente. Numa crítica publicada em Março no site Bachtrack, a autora aprecia a participação na gala Ballet Icons de 2024, com bailarinos que voam de todo o mundo para Londres, onde se realiza o evento. António Casalinho e Margarita Fernandes, de acordo com Amanda Jennings, “dançaram brilhantemente” o pas de deux de Esmeralda: “Casalinho já está bem avançado no seu caminho para o estrelato global; a sua técnica é excelente, mas o seu talento artístico também é especial. Fernandes é formidavelmente forte e também mostra uma abordagem madura à precisão e ao detalhe”.
Numa entrevista ao JORNAL DE LEIRIA, em Janeiro deste ano, António confirma: “Trabalho com o objectivo de poder tornar-me num dos maiores bailarinos da história do ballet”.
A ideia existe “desde sempre” e “com o decorrer dos anos, foi-se solidificando”, adianta o pai, Luís Casalinho, professor de música no Conservatório Annarella Sanchez. António é “persistente, resiliente e focado” e a parceria com Margarita também “tem tido importância, na medida em que se apoiam”. E acrescenta: “têm corrido uma boa parte do mundo como convidados em galas diversas”, o que mostra a qualidade que têm.
E, desta vez, onde tudo começou. Há quase um ano que António Casalinho e Margarita Fernandes não vão a palco em Leiria. Regressam “no auge da fama”, segundo Annarella Sanchez, para quem “é importante a presença deles na cidade”.
Com início às 21:30 horas, a gala de domingo, no Teatro José Lúcio da Silva, deverá abrir com dois actos (1 e 3) do bailado Coppélia. Na segunda parte, membros da Companhia de Ballet Clássico de Leiria, e alguns alunos mais jovens, darão corpo a coreografias neoclássicas como Haydn, de Howard Quintero, que teve estreia mundial em Leiria, enquanto Margarita e António interpretarão Love, Fear, Loss, de Ricardo Amarante, anunciada como estreia em Portugal. O bilhete tem o preço de 15 euros.