A inflação tem dificultado a vida a muitas pessoas. Os pedidos de ajuda têm aumentado?
Já no período da Covid, como tem um meio empresarial muito forte e económico, Leiria não sentiu a crise que as grandes cidades sentiram. O desemprego na região de Leiria, nunca foi o problema das pessoas que estavam a beneficiar da ajuda alimentar. Naturalmente, a tradição são as pessoas sem emprego que precisam deste apoio. No entanto, de algum tempo para cá começámos a notar que Leiria começava a ter necessidades sem ter desemprego. Foi a partir desse momento que percebemos que o perfil do beneficiário estava a mudar lentamente. São pessoas que estão empregadas, que têm família, em que os dois trabalham, mas estão sem condições de fazer face às despesas para as quais tinham estruturado a sua vida. A conjuntura mudou e as famílias ficaram a braços com uma crise tremenda e com um orçamento extremamente apertado para fazer face àquilo que foram os compromissos que assumiram. Por isso, sim, a inflação e tudo o que daqui advém colocou as pessoas numa situação bem mais difícil e o perfil dos beneficiários mudou precisamente por causa desse fenómeno. Já não são só os desempregados que precisam de apoio, são as pessoas que trabalham e que têm um ordenado.
Para essas pessoas é mais difícil pedir ajudar? Sentem vergonha?
Estas pessoas quando dão o passo de pedir ajuda está dado. Não há vergonha, não há complexo de inferioridade. Há o pedido de ajuda sem problema. Fala-se sem problemas, sem prurido, numa conversa absolutamente normal, aberta, serena, sem o peso que a circunstância em si representa. As pessoas não estão, de facto, habituadas a pedir, mas a partir do momento que sentem a necessidade, avançam sem pruridos.
Existem mais pedidos da classe média?
Sim, sobretudo, da classe média-baixa, mas há situações surpreendentes. Situações de pessoas que estavam relativamente bem. Tinham feito as contas a determinado orçamento, mas os juros da casa duplicaram e devoraram o orçamento familiar. Embora, o que mais se nota é a classe média-baixa.
Realizou-se mais uma campanha de angariação de bens no fim-de-semana. Apesar do contexto sócio-económico desfavorável as pessoas continuam solidárias?
Foram angariadas mais de 80 toneladas de alimentos, sobretudo, não perecíveis, que nos permitem fazer a distribuição ao longo dos próximos seis meses. No entanto, as pessoas também dão outros bens frescos ou bens de higiene que também fazemos chegar às instituições, embora façamos apenas uma entrega única. As circunstâncias sociais que vamos vivendo, sobretudo as mais duras e difíceis pelas quais o País passa, cria um certo apelo nos portugueses, uma certa empatia. Percebem as circunstâncias pelas quais os próprios estão a passar e, nesse processo de empatia, acabam por dar o seu contributo, pois sentem que está difícil para todos. Só isso explica que tenhamos aumentado, face ao período homólogo do ano passado, de 74 para 80 toneladas. As pessoas acabam por ajudar, mesmo estando a passar por um momento de menos facilidade. Reconhecem no outro a necessidade de ajudar, porque pensam: não sei se isto um dia me vai acontecer. Sentem que estão muito próximas desse limite. Nada disto é estatístico, mas, de acordo com as várias pessoas com quem conversámos, reconhecem: ‘não sei o que é que me vai acontecer no dia de amanhã’. Há uma certa perda de confiança generalizada e isso gera nas pessoas este sentimento de generosidade e empatia. A altura do Natal também é sempre tradicionalmente mais forte do que a campanha de Maio. Não consigo explicar o aumento que não seja este ganho de respeito pelo outro, que reconhece a necessidade de ajudar, porque sabe que o vizinho, um familiar ou outras pessoas estão em sérias dificuldades. Quem pode ajuda mais um bocadinho. Só se percebe por este exercício, porque de outra forma não faria sentido estarmos a aumentar a oferta num período tão mau como aquele que estamos a viver. As pessoas sentem que têm de dar, porque está tudo a passar mal. Nem em outras crises as pessoas sentiram tanto a fragilidade que sentem hoje. Em termos de produtos que foram angariados, foi uma total surpresa a quantidade de azeite, óleo, atum e leguminosas em conserva que foi alcançada. Tradicionalmente o arroz e a massa esmagavam os outros produtos.
Dão resposta a quantas pessoas?
Apoiamos cerca de 4.500 pessoas, que estão distribuídas por 61 instituições. Temos outras instituições parceiras, mas esporádicas, que ajudamos quando temos excedentes, que não são necessariamente as conferências vicentinas. A grande missão do Banco, além de ser o combate ao desperdício, é poder apoiar as famílias directamente. Muitas instituições podem ser beneficiárias, mas as famílias estão em primeiro lugar. É nelas que depositamos grande parte do nosso esforço, apoiando através das conferências vicentinas ou dos grupos caritativos.
Mantêm o apoio da prisão-escola nos produtos frescos?
Todas as semanas fazemos recolha na prisão-escola. O ano passado alcançámos quase 15 toneladas de produtos hortícolas e frutícolas. Esses produtos chegam todas as quartas-feiras e são distribuídos no próprio dia. Quando temos excedentes de produtos frescos ou perecíveis, temos de os despachar logo, porque não temos uma câmara frigorífica.
Os bens recolhidos dão resposta aos pedidos de ajuda?
Gostávamos de reforçar o cabaz. Esta é a questão essencial. É óbvio que gostávamos de garantir um cabaz muito mais recheado e rico às pessoas. A quantidade de alimentos interfere rigorosamente com isso. Tudo o que angariamos na nossa zona, que vai desde Porto de Mós até ao norte do distrito, Fátima e Ourém, é distribuído às pessoas da respectiva zona, incluindo os vales alimentares. É importante que as pessoas percebam que estão a dar uma coisa que pode ser para o vizinho ou para alguém que conhecem. Por isso, se já existe empatia e generosidade, se percebermos que o que estamos a fazer é realmente de nós para nós, é possível que ainda consigamos alcançar melhores resultados. É isso que pretendemos: melhorar os resultados para poder ter um cabaz mais recheado. Não obstante, posso garantir que há um cabaz sempre digno para cada família levar para casa. O cabaz é feito em função da pessoa, que depois é multiplicado, e se houver crianças ou idosos levam outro tipo de produtos. Preparamos os cabazes para as instituições, que se encarregam de os levar às comunidades locais.
Nesta altura do Natal há algum cabaz especial?
Aquilo que fazemos é reforçar o cabaz. Caso detectemos que há produtos em falta, contactamos as instituições da indústria alimentar para perceber se há excedentes que possamos aproveitar. Pode acontecer que tenhamos de converter os donativos financeiros em produtos, embora não seja esta missão do Banco, que pretende combater o desperdício e recolher o que está a mais para poder distribuir. Mas a partir do momento em que isto está esgotado e que as famílias precisam de receber o cabaz digno, então faz-se a conversão.
Assumiu a liderança do Banco Alimentar Leiria-Fátima há 3 anos. O que significa estar à frente de uma instituição como esta?
Isto é uma prova de vida. Não há nada na nossa vida que nos preencha quando estamos a pensar neste trabalho e quando vemos tanta gente a dedicar-se a ele sem receber nada em troca. Quando vemos tanta gente a beneficiar desta resposta e a importância que isto tem é evidente que sinto uma gratidão enorme. Sinto-me um privilegiado por ter tido a oportunidade de passar por aqui, porque, por muito que ouçamos e vejamos todos os dias na televisão, nada se compara ao contacto com a realidade. É uma aprendizagem enorme, quer a nível pessoal quer a nível social. É preciso transmitir a todos que o voluntariado não pode acabar. É preciso trabalhar muito bem as novas gerações para fomentarmos neles o espírito do voluntariado e da ajuda. Não esqueçamos que a geração que está a trabalhar hoje em dia com o Banco Alimentar, recorda-se de viver a rua. Aprendemos a cuidar do vizinho, dos primos, dos avós. Ao fim de 40 anos damos conta que os nossos filhos não têm rua. E como é que eles aprendem a cuidar dos outros se ninguém lhes ensinar? Isto preocupa-me. Temos de preparar esta estrutura – Banco Alimentar – e todas as outras que existem para fomentar na sociedade o espírito de voluntariado. A solidariedade é uma coisa difícil de explicar. Tínhamos connosco esse valor muito bem vincado, agora nem tanto.
De que forma é que essa solidariedade pode ser incutida nas crianças?
A solidariedade é um valor que só emerge quando as crianças estão preparadas e maturadas e sentem as dores do outro. Todas as suas acções do dia-a-dia, no contexto de escola e familiar, têm de ser enquadradas no processo de cuidar dos outros. É preciso despertá-los para esta sensibilidade.
O que mudou no Banco Alimentar com a sua liderança?
Mudou a forma como distribuímos os alimentos. Tivemos de achar novos critérios, debatê-los e incuti-los. Mudou a forma como fazemos a triagem dos alimentos e houve alterações do ponto de vista das infra-estruturas. Conseguiu-se fazer um ligeiro upgrade. Um pouco com a ajuda de toda a gente e com muito trabalho de alguns conseguiu-se melhorar os equipamentos, a segurança do espaço e as redes eléctricas. Não podia presidir a uma instituição que não prezasse por garantir a segurança de quem está aqui dentro.
Que projectos existem?
Temos o projecto papel por alimentos suspenso. O papel ficava num armazém ao lado, só que implicava que a carrinha tivesse de ficar dentro do armazém dos alimentos. Ora, isto é uma questão de salubridade que não podia acontecer. Houve determinadas questões que tivemos de mudar radicalmente a muito custo. Os equipamentos e máquinas de exterior ficam sempre no outro armazém. Gostávamos de pensar numa alternativa que nos permitisse responder melhor à missão do Banco e aderir a estes projectos que vamos deixando suspensos, porque não temos condições de infra-estruturas para o fazer. Temos de encontrar uma alternativa ao espaço actual para acompanhar outros programas da Federação e para ter uma câmara de refrigeração para produtos perecíveis, que nos permita fazer a conservação e uma distribuição mais tranquila e mais justa. É para isso que vamos trabalhar no próximo ano.
Quantos voluntários trabalham de forma assídua?
Entre dez a 12. Durante as campanhas envolvemos entre 1.200- 1.300 este ano, sendo que a grande maioria estão nas lojas. Na triagem podem passar cerca de 150 pessoas nos dois dias.