Deixou a política activa há quase um ano. Sente saudades?
Não. Cada coisa tem o seu tempo e foi tudo programado. Foi nesta sala [em sua casa] que o Dr. Raul Castro me convenceu a ser candidato à Assembleia Municipal em 2017. Já cá tinha estado quatro anos antes, mas então recusei, porque queria fazer uma pausa da política. O actual presidente da Assembleia [António Sales] era presidente da Federação do PS e ainda insistiu comigo, mas não me demoveu. Mas, em 2017, ficou claro que seria apenas um mandato. É o que manda o bom-senso. Já tenho 82 anos.
Mas mantém-se activo.
Pois mantenho. Continuo ligado à Caixa [de Crédito Agrícola de Leiria], onde vou dois dias por semana e sou administrador não-executivo. É uma função de fiscalização. Não executo nada nem intervenho na gestão diária. Vale a experiência de 55 anos de banca, 25 no Banco de Portugal, entre 1968-92, e 30 anos na Caixa.
E de política, quantos são? Em que momento despertou para a política?
Despertei para a política em 1962 em Coimbra, com a crise académica, mas já tinha participado na campanha de Humberto Delgado à Presidência da República, em 1958. Recentemente, chegou-me uma fotografia onde estou a acompanhar o candidato presidencial numa acção de rua em Viseu. Estava, então, a concluir o 7.º ano do liceu.
Falando de Viseu, como foi a sua infância?
Sou um urbano, filho de urbanos. A minha mãe era doméstica e o meu pai empregado do Banco de Portugal. Vivíamos de forma remediada com o vencimento do meu pai, mas sempre na cidade. Tínhamos de comprar tudo, da água ao sal. Esse lado citadino fez-me passar algumas vergonhas com os meus soldados (risos). A certa altura, no meio de um exercício, um deles apontou para uma árvore e perguntou-me se era uma macieira ou uma pereira. Não lhe soube responder.
Quando termina o liceu vai para Coimbra estudar Matemática. Qual era o plano?
Entrei em 1959. A ideia era ser professor de liceu, mas não acabei o curso. A adaptação a Coimbra foi normal. No primeiro ano, estive sozinho alojado num quarto, mas no segundo, a família mudou-se para lá. O meu pai pediu a transferência, até porque a minha irmã estava também para entrar para a faculdade. Depois, vem a crise académica de 1962 e tudo se altera. É verdade. Nessa altura, já esta estava muito metido nos movimentos da Associação Académica. Fui jogador de rubgy e de futebol na Académica. Guardo em casa a taça referente ao título de campeão nacional universitário de futebol. Esta parte correu sempre bem. Os estudos nem tanto e acabaram de vez em 1962. Em Maio desse ano, a sede da Associação Académica, que funcionava no Palácio dos Grilos, foi fechada a cadeado. Eu e alguns companheiros, tirámos o selo. Participei também em algumas manifestações em Lisboa. Foi aí que conheci Jorge Sampaio. Em Novembro de 1962, a PIDE apareceu-me em casa. Eram quatro agentes, que me levaram para a rua Antero de Quental [onde funcionava a sede da polícia política em Coimbra].
Foi inesperado?
Diria que sim, embora já tivesse tido alguns avisos através do meu pai, vindos de uma pessoa de Aguiar da Beira, que dizia para eu ter cuidado e me meter na ordem.
Que recordações tem do dia em que foi preso?
Era sábado e eu tinha uma aula teórico-prática de Química às 11 horas. Eram umas sete da manhã quando eles entraram em casa. Os meus pais, coitados, ficaram em polvorosa. Vasculharam a casa toda.
Encontraram alguma coisa que o comprometesse?
Tinha havido eleições legislativas há pouco tempo. O candidato em Coimbra pela oposição foi Luzeiro Henriques, médico psiquiatra. Era o chamado candidato dos estudantes. Estive muito activo nessa campanha. Os agentes da PIDE encontraram no meu quarto uns autocolantes que vendíamos para angariar algum dinheiro para a candidatura. Disse- -lhes que os tinha comprado, por um escudo. Um dos agentes disse: ‘Não foi enganado, era o preço’. Há coisas que não se esquecem. Também me lembro que um deles tinha um emblema do Belenenses ao peito. Disseram-me que a ordem de detenção veio de Lisboa e que tinha de ir com eles. Perguntei se podia levar a sebenta para depois ir à aula e responderam que sim. Deixaram entender que me iriam fazer algumas perguntas e seria libertado.
Mas não foi assim que aconteceu.
Foi, mas só na véspera de Natal desse ano. Ou seja, mais de um mês depois. Há pouco tempo, alguém me enviou cópia da ficha da minha prisão, que está na Torre do Tombo, que encontrou no Google. Como foi o tempo de cárcere? Meteram-me numa cela. Só na segunda-feira é que me interrogaram. Perguntaram-me sobre uma sessão no Teatro Avenida para a apresentação da lista da oposição às legislativas, dizendo que eu estava “bastante entusiasmado”. Também quiseram saber se o meu nome – António José de Almeida – era ‘por acaso’. Respondi que não, que a minha mãe era ‘Almeida’ e que o meu pai era um grande apreciador da figura do presidente António José de Almeida, da Primeira República. Perguntaram-me também se eu simpatizava com o regime ou se o hostilizava. Respondi que não às duas questões, que não simpatizava, nem hostilizava. Quiseram saber se era comunista. Disse-lhes que não, que me considerava um democrata, um social-democrata.
Foi maltratado?
Não. Fui interrogado várias vezes, mas nunca me tocaram. Quando fui libertado e me levaram ao director perguntei-lhe porque tinha sido preso. Limitou-se a dizer: ‘Faça por esquecer’.
Chegou a saber a razão da prisão?
Esteve relacionada com dois amigos meus, que eram gémeos, que andavam em Medicina e que foram apanhados numa acção em que eu também participei, quando subimos à torre da Universidade [de Coimbra] e substituímos a bandeira nacional pela da Académica. O carro dos meus amigos e eles foram identificados, mas os restantes ocupantes não. Eles foram suspensos um ano em Coimbra e foram transferidos para Lisboa. Naquele tempo, quem estudava, tinha de apresentar prova da conclusão de, pelo menos, duas cadeiras para não ir à tropa. Eles mandaram-me os documentos com essa informação, mas juntaram uma série de panfletos das manifestações em Lisboa. A carta foi apanhada. E assim nos foram buscar.
Acabou por ser chamado para o serviço militar.
É verdade. Quando entreguei os meus papéis para provar que tinha feito as duas disciplinas, estes não foram aceites. Acabei por ser intimado para me apresentar na Escola Prática de Santarém. Fi-lo em Agosto de 1963. Só sai da tropa em 1967. Fiz 22 meses em Portugal e 26 em Angola. Entretanto, casei-me e a minha filha mais velha nasceu quando eu já estava em Angola. Só a conheci quando ela já tinha cinco ou seis meses. A meio da comissão, a minha mulher foi ter comigo e a nossa segunda filha nasceu lá. Só a mais nova nasceu em Portugal.
Findo o serviço militar, já não retomou o curso?
Não. O meu meu pai ainda insistiu para eu voltar à universidade. A minha mulher era professora, mas não tinha escola. E já tínhamos duas filhas. Acabei por me candidatar à banca.
E assim surge Leiria no seu caminho.
Concorri para o Banco de Portugal em Coimbra. Só que a instituição não permitia que pai e filho trabalhassem juntos. Acabaram por me mandar para Leiria por 17 meses, o tempo que faltava para o meu pai se reformar. Entretanto, a minha mulher arranjou escola e eu gostei da cidade. Ficámos. Já lá vão 54 anos.
Chegou a Leiria em 1968. Teve alguma actividade política até ao 25 de Abril?
Não. Obviamente, mantive as minhas ideias, mas sem actividade política. Só volto a estar politicamente activo após o 25 de Abril. Sou o militante do PS com o número 1243, com data de 1 de Maio de 1974. Não terei entrado nesse dia, mas foi nesse mês ou em Junho. Em 1976, fui eleito para a Assembleia Municipal de Leiria. Seguiram-se várias mandatos, até que, em 1994, assumi o cargo de vereador.
Pelo meio, fez uma incursão pelo PRD, criado em 1985 por Ramalho Eanes. Como se dá essa mudança?
Nunca fui militante do PRD. Saí do PS quando se deram os problemas graves entre Mário Soares e Salgado Zenha. Achei que Soares se portou muito mal. Acabei por me chegar ao PRD, sem nunca ter sido militante, também por influência do engenheiro Ribeiro Vieira. Aí nasceu uma amizade para a vida. Estive fora do PS seis ou sete anos. Nunca deixei de ser socialista, mas reconheço que votei no PRD.
Como se dá o regresso ao PS?
Nunca me riscaram do partido. Voltei por uma grande insistência do senhor Cabrita [Franco] e de Rui Vieira, já com o propósito de concorrer à câmara, numa lista que veio a ser liderada por Mário Matias. Reentrei em 1993 e fui vereador no último mandato de Lemos Proença. Foram umas eleições muito renhidas. A SIC ainda chegou a dar o senhor Mário Matias como presidente. O PS elegeu três vereadores, o CDS-PP dois e PSD quatro.
Veio a assumir o pelouro da Educação. A escolha foi sua ou do presidente?
Foi minha. Ele convidou os vereadores da oposição para terem pelouro. A mim, propôs-me o Desporto, mas não aceitei. O Dr. Hélder Roque já tinha começado com o projecto de requalificação do estádio, com a construção da bancada nova. Disse-lhe que só aceitava a Educação. Foi algo que me deu muito prazer.
Do que é que mais se orgulha?
Orgulho-me muito da requalificação do parque escolar. O plano tinha sido feito pelo meu antecessor, José Manuel Silva (PS). Ele pediu o mundo inteiro e eu tentei cumprir o mundo inteiro. O engenheiroProença sempre me ajudou. Deixou-me fazer tudo o quis fazer como vereador da Educação e que estava prometido. Fiquei-lhe grato por isso. Leiria era o concelho do País com mais escolas (135). Nesse mandato, a partir do pelouro da Educação, fez-se também uma acção cultural importante, com a astronomia nas escolas, recriações históricas e o festival de teatro juvenil. Agora, encomendase tudo. Na altura era tudo feito pelas escolas. Conseguimos aceder ao programa Ciência Viva, com um subsídio de 30 mil contos [150 mil euros]. Dotámos as escolas com telescópios e estações meteorológicas.
Como era a sua relação com Lemos Proença?
Não discutíamos política. O que se fez na educação eram coisas com as quais todos os partidos concordavam: dar melhores condições às escolas e criar mais actividades lúdicas e científicas. Via-me depois atrapalhado para que ele pagasse aos empreiteiros, que andavam sempre atrás de mim. Diria que tivemos uma ligação operacional, com as naturais divergências políticas. Fiz tudo para conseguir o que queria para o concelho. Além de obras nas escolas, construímos muitos jardins de infância e resolvemos o problema com as EB 1,2,3 de Santa Catarina da Serra e de Colmeias, que estavam com obras paradas há dois anos e sem dinheiro para as acabar. Conseguimos candidatá-las, acabá-las e inaugurá-las, tudo num mandato.
Com a eleição de Isabel Damasceno, em 1997, os vereadores da oposição deixaram de ter pelouros. Concorda que, quem ganha, governa?
É muito difícil ser da oposição e ter pelouro. Consegui fazê-lo sem atraiçoar as minhas convicções. Aquando da aprovação da construção da rotunda do McDonalds, com duas bombas de combustíveis, votei contra. Nos dias seguintes tive de pedir dinheiro ao engenheiro Proença para pagar a um empreiteiro por obras em escolas. E ele deu. A certa altura, quando Mário Soares condecorou Lemos Proença, o Dr. Hélder Roque levou a reunião de câmara a proposta de voto de louvor ao presidente da câmara. Está lá o voto contra, meu e dos restantes vereadores do PS. Também votámos contra em quase todas as construções polémicas dessa altura. O facto de termos pelouro não nos impediu de agir em consciência, num mandato em que se cometeram muitas das atrocidades ao urbanismo que marcaram a cidade para sempre. Voltando à pergunta, discordo completamente do nosso modelo de governação autárquica. A nossa Lei mais iníqua é a da Administração Local.
Porquê?
Uma câmara tem de ser como um governo. Só devia ser eleito o presidente, que depois escolhia os seus vereadores como o primeiro-ministro escolhe os seus ministros. Depois, teríamos uma assembleia municipal (AM) forte, com espaço para, aí sim, se fazer política. O que acontece nas reuniões de câmaras, devia acontecer na AM. Claro, que esta deve ter outros poderes e exercer um controlo rígido sobre a execução do orçamento e o estado do concelho.
A reviravolta aconteceu em 2009, com o PS a conquistar a câmara pela primeira vez.
Faço um parêntesis. Quando fui vereador da Educação e à medida que Lemos Proença anuía àquilo que eu pedia e se começou a notar o meu trabalho, ele foi chamado ao PSD. Contou-me que lhe perguntaram se sabia o que se estava a arranjar, porque eu me estava a preparar para ser presidente de câmara. Nunca quis isso. Os quatro anos que fiz como vereador com pelouro mostraram-me que eu era capaz de governar a câmara, mas não me considerava capaz de a ganhar. Nessa altura, o PSD ganhava, fosse com quem fosse.
Mas em 2009 não foi assim. Culpa do PSD e de Isabel Damasceno?
É óbvio. Nos mandatos de Isabel Damasceno não se cometeram as atrocidades urbanísticas do tempo de Lemos Proença, mas as obras do estádio fizeram resvalar a situação económica do município. A Dr.ª Isabel, que considero uma pessoa honesta, a certa altura perdeu a mão na gestão da câmara devido ao imbróglio do estádio. A câmara chegou a demorar 400 dias a pagar aos fornecedores. Raul Castro, com a sua pertinácia e resiliência, ganhou de uma maneira quase impensável. Fez um bom mandato e o PSD desagregou-se completamente. O PSD em Leiria suicidou-se e o PS aproveitou isso para conseguir uma maioria louca (8 vereadores contra três). Diz-se que uma câmara não se ganha, mas perde-se, tal o poder que o presidente da câmara tem concentrado em si. É poder a mais. Um presidente de câmara só pode ser destituído pela Justiça. É o cargo mais protegido por Lei.
Como viu a transição de poder entre Raul Castro e Gonçalo Lopes?
Estranhei o facto de Raul Castro ter aceitado ir para Lisboa [Assembleia da República]. Para Gonçalo Lopes, a saída foi o melhor que lhe podia ter acontecido. Permitiu-lhe provar alguma coisa antes de ser submetido a escrutínio. Não é parvo, tem experiência e aproveitou a boa situação financeira da câmara. A transição começou por ser pacífica, mas depois a relação estragou-se. Raul Castro tinha as suas ideias em relação a determinados projectos, como o multiusos. Por outro lado, Gonçalo Lopes estava a ver o multiusos como um novo estádio.
Andou bem ao suspender o projecto?
Não tenho bem a noção do projecto e dos seus custos. Lamento que Leiria não tenha uma estrutura dessa natureza, para a realização de congressos e de grandes competições de desportos de pavilhão. Mais não digo. Que avaliação faz da actual governação autárquica? Está bem entregue, com gente muito válida e trabalhadora e uma vereadora da Educação bastante capaz e com ideias bem sustentadas. Pelo que vejo, nomeadamente do PSD, vamos ter o PS na Câmara de Leiria durante muitos anos. Mas gostava que houvesse uma oposição forte, que torne incerto o resultado eleitoral, em que seja preciso fazer bem para ganhar.
De tudo o que fez na vida, o que mais o realizou?
Do ponto de vista pessoal, foi educar as minhas filhas. Fora isso, talvez o que me tenha realizado mais aconteceu enquanto comandante de pelotão. Fiz uma guerra com a qual não concordava. Não tinha espírito para fugir e passar a fronteira para evitar a guerra. Passei as passas do Algarve em Angola. Um camião passou-me por cima das pernas e estive debaixo de fogo em situações tremendas, mas arranjei amizades para a vida. Também fui muito feliz como vereador da Educação e presidente da AM. Neste cargo, orgulho-me de ter conseguido respeitar o direito de oposição e de tratar os deputados equitativamente independentemente do partido que representam. Também foi possível dar maior visibilidade ao órgão e incentivar os munícipes a utilizar o direito de intervenção. A maior mágoa foi não ter assistido ao início das obras no edifício da antiga cooperativa agrícola para acolher a AM.