O ambiente começou a aquecer na segunda parte com alguns apitos, braços no ar, o jogo parado várias vezes e até uma situação de perigo fora da grande área que fez mostrar o cartão vermelho ao guarda-redes. Na equipa de arbitragem, duas mulheres lideravam o apito, faziam cumprir as regras da modalidade dentro das quatro linhas e até tiveram decisões aplaudidas pelos adeptos.
“Para nós é muito melhor um jogo em que eles disputam mais o futebol e nós conseguimos ficar na sombra, do que quando temos de tomar medidas que causam impacto na equipa”, conta Ana Morgado.
À saída de um jogo de futebol 11 da distrital “mais desafiante” e “com ânimos mais quentes”, no final da tarde de domingo, a árbitra de 25 anos, da Marinha Grande, garante que, “nem assim, dá vontade de desistir”.
“A arbitragem é uma paixão”, afirma quem há seis anos já se interessava pelas regras e fez “a escolha fácil” de apostar nesta carreira quando teve que se despedir do futebol por causa de uma lesão. [LER_MAIS]
No topo do quadro da arbitragem distrital e conhecedora do ambiente do campo enquanto jogadora, conta que esta função “requer muito estudo, treino, dedicação e tempo”, mas também permite “compreender o lado dos jogadores” e “fazer uma leitura do jogo”, independentemente dos géneros.
“No feminino é mais efusivo, sentimental e as reacções são mais energéticas connosco, no masculino, talvez também pela estranheza de não nos verem muitas vezes, existe um impacto inicial e têm muito mais respeito por sermos mulheres”, conta Ana.
Consigo traz bem presente um dos conselhos que recebeu no início do curso de arbitragem: “O futebol sempre foi feito de jogadores, é para eles que também trabalhamos”. E isso justifica o ‘jogo de cintura’ que tem com as reacções dos jogadores, mas também dos adeptos.
“Nomes e bocas são maus, não gostamos, mas são comuns no futebol”, avança a colega Beatriz Baptista, de 19 anos, que nesta partida assumiu a posição de fiscal de linha. “Por sermos mulheres às vezes também ouvimos um ‘vai para casa lavar a roupa’ ou um piropo, mas depois acalmam- -se”, garante.
Já tinha dado uns toque na bola mas a sua vida nestas andanças só começou realmente há três épocas, “por causa de uma brigazinha” com a mãe. “Ela estava um pouco chateada com o desempenho da equipa de arbitragem num jogo e eu disselhe que sendo assim ia tirar o curso”, partilha entre gargalhadas. Com um “percurso de muitas oportunidades”, a árbitra do quadro de base distrital que vive perto de Fátima, tem a semana repleta de estudos e treinos na capital e vem ao fimde- semana para arbitrar, garante que tem sido uma jornada “incrível”.
Dentro das quatro linhas que até há bem pouco tempo eram lideradas apenas por homens, as duas jovens acreditam: “A mulher está a conquistar um lugar de respeito”.
Uma paixão partilhada no futsal
Apesar de ser uma modalidade diferente e com regras específicas, também no futsal se partilha a conquista das mulheres no mundo da arbitragem.
Conhecemos as histórias destas árbitras de forma individual, mas parece que estiveram a conversar juntas porque, mesmo sem saberem, complementam-se no que toca ao mundo de regras dentro das quatro linhas. Defendem a importância de se fazer cumprir as regras, falam da paixão pelo apito, sentem que é mais fácil arbitrar jogos masculinos, têm mais desafios por parte de bancadas com adeptas e afirmam que o importante é o jogo.
“Às vezes há problemas porque as pessoas se focam demasiado na equipa de arbitragem, quando o importante é o jogo”, reforça Cristina Vicente.
De sorriso rasgado, com 26 anos e natural da Benedita, Alcobaça, conta que deixou o futsal há quase uma década para se dedicar à arbitragem porque era curiosa pelas regras e teve uma lesão. “Mas principalmente por paixão, porque quando estou numa coisa gosto de me dedicar e estar a 100%”, acrescenta, num dos intervalos das aulas na escola onde é professora de educação física.
Depois de puxar o namorado para a arbitragem, e com uma gestão meticulosa da vida profissional com a pessoal, a árbitra nacional luta pela categoria máxima e defende ser “importante desmistificar a ideia de que os árbitros são infalíveis”. “Todos erramos dentro de campo, a equipa de arbitragem, os treinadores e os jogadores.
Mas, para mim, o importante é saber que quando assinalo alguma coisa eu tenho a certeza do que estou a fazer”, conta, já habituada a fintar os jogadores mais ‘fiteiros’.
Sobre as bancadas difíceis, por vezes com “adeptas más” ou “algum machismo”, prefere realçar, entre risos, as vezes em que “a equipa de arbitragem é aplaudida” ou um dos últimos jogos em que “passaram o tempo todo a chamar princesa”.
“Uma pessoa habitua-se e já não liga”, acrescenta a colega Ana Ribeiro, de 32 anos e natural de Santo Tirso, Porto. A viver em Leiria e destacada como árbitra no quadro nacional, faz parte da única equipa de arbitragem totalmente feminina do País e não se vê a fazer outra coisa.
Habituada a jogar futsal, estava no exército quando uma amiga lhe aguçou a curiosidade pela arbitragem.A impossibilidade existente na altura de arbitrar e jogar fizeram-na desistir da ideia que, no ano seguinte, agarrou com unhas e dentes. “Eu já jogava há anos, mas só percebi a complexidade das regras quando comecei o curso”, confessa, sobre um tempo em que ainda não havia quadro de arbitragem feminina no fustal e as colegas do futebol se contavam pelos dedos de uma mão.
“Felizmente já somos cada vez menos um nicho, claro que é um mundo de homens, mas é cada vez menos”, sublinha, poucos anos depois de pertencer ao primeiro curso de árbitras da categoria feminina de futsal nacional. O balanço de sete anos nesta aventura, garante, “são sucessivas trocas de coisas boas, sentimentos e experiências”.
“É um desafio físico, técnico e emocional, um auto-conhecimento que temos em cada jogo”, acrescenta.
E é atrás disso que corre Sara Joaquim, dos Marrazes, Leiria. Aos 17 anos, a jovem que pratica patinagem artística desde criança abraçou o novo desafio de fazer o curso de iniciação de arbitragem por inspiração do pai que é treinador de futsal. “Gosto muito da modalidade e queria saber mais das regras”, conta, quem também “era o tipo de pessoa que reclama da bancada”.
A maioria das pessoas que fala assim é porque não conhece as regras e eu queria conhecer e perceber que se calhar também estava errada ao reclamar com quem estava a fazer o seu trabalho”, acrescenta, com o equipamento de arbitragem que, tal como a patinagem, implica “mais organização da vida pessoal”, “coordenação” e “muita pressão do público”. “E isso faz-me ser melhor”, conclui.
Aposta na formação
As árbitras da Associação de Futebol de Leiria (AFL) são um dos reflexos da “aposta feita na formação e no desporto feminino”.
Há um grande investimento no futebol e no futsal feminino pelo que também foi necessário fazer esse investimento na arbitragem”, explica o presidente do conselho de arbitragem da AFL.
A região tem várias árbitras no quadro e ao serviço da federação porque, afirma Carlos Amado, “elas entregam- se muito, são competitivas, responsáveis e profissionais”.
Numa sociedade que proclama igualdade, o presidente garante que “hoje, felizmente, as mulheres são muito bem aceites pelos clubes, pela massa associativa e pelos adeptos”.
Esta época a AFL tem em actividade 83 árbitros de futebol e 33 de futsal. Desses, a percentagem de mulheres a desempenhar varia entre oito e 20 por cento, num registo com poucas alterações ao longo dos últimos anos. Um dado que é influenciado pelo período da pandemia durante o qual a associação registou “um abandono acentuado da actividade” que agora representa “falta de árbitros para fazer face ao número de jogos”.
Para tentar inverter a situação, a AFL promove, a partir de dia 26, um novo curso para árbitros de futebol e futsal porque, como sublinha o presidente, “a arbitragem é sempre um projecto inacabado”.