Andreia Ricardo, 43 anos, vive com a filha na Marinha Grande. Trabalha em Leiria, mas mudou-se para a cidade vidreira há menos de um ano, por causa dos custos habitação, que assumiram valores “exorbitantes” na capital de distrito.
“Consegui aqui um T2 a metade do preço”, conta a gestora de qualidade, que o JORNAL DE LEIRIA encontrou junto ao Jardim Luís de Camões, na Marinha Grande, a caminho de casa. Aceita interromper a caminhada para falar dos resultados das últimas eleições que, pela primeira vez, deram a vitória ao Chega em concelhos do distrito que tradicionalmente votam à esquerda: Marinha Grande, Nazaré e Peniche. Anda, há mais de uma semana, com uma pergunta na cabeça: “Como é possível?”.
“Só encontro uma explicação. As pessoas estão fartas do PS e do PSD. Pela primeira vez, votei em banco”, assume Andreia Ricardo, revelando que “sempre” votou nos socialistas, mas que, desta vez, não se sentiu mobilizada pelo projecto do partido, sobretudo, por não rever em Pedro Nuno Santos “perfil para estar à frente do Governo”.
Olhando para as vitórias do Chega na Marinha Grande e noutros concelhos historicamente ligados à esquerda, a gestora de qualidade admite que tal “não tenha tanto a ver com as ideias” que o partido de André Ventura oferece, mas mais com o facto de as pessoas estarem “cansadas do sistema”. “Querem mudar e já não acreditam que PS ou PSD lhe ofereçam essa mudança”.
Leitura idêntica faz Álvaro Órfão, ex-presidente da Câmara da Marinha Grande e histórico socialista, para quem os resultados expressam “um voto de raiva”. “As pessoas estão zangadas com a política e com os políticos e pela forma como vivemos hoje, 51 anos depois do 25 de Abril”, afirma o antigo autarca, considerando que o discurso do Chega acaba por “entrar bem” neste contexto de “zanga”, porque “responde aos pontos que estão a sangrar na sociedade”, como a saúde e os “baixos” salários.
“O slogan do Chega – ‘são todos iguais’ – cavou fundo. É preciso tapar esse buraco”, adverte o socialista, ex-deputado à Assembleia Constituinte, que entende que as responsabilidades devem ser assumidas “por todos, pela forma como não soubemos passar da alfabetização à cultura”.
“Nem precisava de cartazes”
Já para os irmãos Hélder e Vítor Silva, ambos a trabalhar na indústria dos moldes, “não é difícil perceber” as razões da vitória do Chega na Marinha Grande, onde vivem desde bebés, vindos de Gouveia, no coração da Serra da Estrela.
“O meu pai veio trabalhar para os moldes e trouxe a família”, contam, admitindo que “a questão da imigração” pesou no resultado do concelho, que é hoje uma torre de babel, tantas são as nacionalidades das pessoas que aí habitam, chegadas, sobretudo, de países como o Paquistão, o Bangladesh ou a Índia.
Frisando que, até ao momento, “não tem havido problemas”, os dois irmãos admitem, no entanto, que esta multiplicidade de “etnias” pode causar “desconforto”. “Foi por isso que muitos votaram no Chega”, acrescenta Carla Silva, esposa de Vítor, que diz não ter ficado surpreendida com os resultados.
“Já se estava à espera. Ele [André Ventura] sabe aproveitar o descontentamento. Nem precisava de cartazes.” Na Marinha Grande, onde o PS sempre venceu em eleições legislativas, o Chega ganhou agora por 80 votos de diferença em relação aos socialistas.
Na Nazaré, o partido de Ventura obteve mais 120 votos do que a coligação PSD/CDS-PP, sendo que, em Peniche, a vitória foi mais folgada, com um resultado de 30,32% e uma diferença de 895 votos face à Aliança Democrática.
Antigo vereador e presidente de Junta da Nazaré, António Trindade considera que os resultados “não foram surpresa” e explica- -os, sobretudo, pela “saturação do eleitorado” em relação aos partidos que têm governado o País.
No seu entender, mais do que a crise na habitação e no Serviço Nacional de Saúde, duas das questões que mais preocupam os portugueses, ou até a imigração, de que o Chega se tem “aproveitado”, pesou a “indignação das pessoas face aos partidos” e a “revolta por anos de promessas por cumprir”.
“Não foram feitos investimentos ao nível da educação e da cultura por forma a ficarmos mais protegidos de situações de grande oportunismo”, acrescenta António José Correia, que cumpriu três mandatos como presidente da Câmara de Peniche eleito como independente em listas da CDU.
Afastado da vida política desde que deixou o município em 2017, defende que é necessária “uma refundação dos partidos tradicionais”, com os jovens a terem um papel importante a desempenhar.
“É altura de os jovens com valores, que não vão atrás de ideias messiânicas, imporem aos partidos novas formas de fazer política, com transparência e sem jogos florais”, exorta o antigo autarca, deixando um desafio: “Olhe-se para a Fortaleza [de Peniche]. Ela é memória viva daquilo que não queremos para o futuro”.