Pois foi assim que aconteceu: em pleno Rossio de Leiria transformado durante uma noite e dois dias numa alegoria medieval, vindos do nada, eis que surgem dois astronautas a passear-se cidade fora empunhando cartazes com dizeres reivindicativos de que o espaço é de todos.
Esta profanação foi prontamente corrigida por quem de direito. E muito bem! Que é sabido que os tempos medievos eram de gente com os pés bem assentes na terra e não de seres vestidos de branco que se movimentavam em passos largos e lentos, quase aos saltinhos, como se a lei da gravidade não existisse.
Verdade seja que a dita cuja lei, à altura, ainda não tinha sido redigida, logo ninguém seria obrigado a obedecer a um decreto que ainda não existia.
Contudo, já o mesmo se não pode dizer dos seres vestidos de branco. Anjos, arcanjos e serafins já existiam, mas esses tinham asas, faces rosadinhas e rechonchudas e voavam, coisa que estes dois em causa não faziam. Logo não eram, definitivamente, anjos.
Assim, o segurança de serviço fez muito bem em enxotá-los dali, não fosse dar-se o caso que algum dos visitantes, imbuído no espírito e solenidade da época, os tomasse por seres divinos e logo teríamos ali a perigosíssima génese de uma qualquer aparição que futuros estudiosos, céticos e conscientes, diriam ter ocorrido exatamente do mesmo modo há cem anos atrás.
Um sarilho que se evitou pela celeridade da ação do segurança de serviço. É que nestas coisas as ocorrências tomam dimensões que facilmente fogem ao controlo e pior coisa não há. Daí à hecatombe é um pequeno passo para o homem mas um salto para a humanidade.
Imagine-se, por exemplo, que alguém decidia oferecer aos astronautas uma especiaria genuinamente medieval, gomas, de seu nome, e que se vendia num bazar de rua logo ali a dois passos? Atente o leitor para a perigosidade do evento.
[LER_MAIS] Poder-se-ia dar o caso de ocorrer ali à vista de todos um paradoxo da física com contornos alquímicos, senão mesmo com consequências metafísicas.
Num mesmo espaço comum – quiçá, o reivindicado pelos astronautas – coincidiriam dois tempos diferentes: de um lado o trajar e o viver medievo, com o paladar agridoce das pequenas tiras gelatinosas.
Ou pior ainda, os seres de branco, ao verem tal iguaria, poderiam erguer a viseira dos seus capacetes, descomprimiam e poderiam tornar-se em poeira cósmica ali à frente de todos.
E depois, quem era o responsável? O Einstein? Não que esse pertencia a um tempo intermédio entre o medieval e a conquista do espaço e quanto muito teria uma cadela chamada Laika ou chamava carinhosamente Spuntik ao chaço estacionado à porta.
Ora, se quiséssemos manter o rigor histórico da coisa e dar uma ordem a tão inusitados factos só nos restaria uma solução: culpar alguém de heresia e enviar um qualquer para a fogueira.
Sendo que (presumo) os astronautas teriam a sua nave espacial estacionada ali para os lados do Parque do Avião, punham-se na alheta e nunca mais ninguém lhe punha os olhos em cima por mais que para cima olhássemos.
Os políticos da terra andavam a passear as vistas e a gozar o efeito e por costume saem sempre incólumes, por isso ninguém lhe pegava. O mercador das gomas mantinha-se no figurino da época e como há que defender o comércio tradicional seríamos, com ele, benevolentes.
Logo, só restava o pobre do segurança para bater com os costados no cepo e servir de churrasco. Foi expedito o homem a livrar-se e a livrar-nos de um belo sarilho. Merecia uma estátua se ainda sobrassem rotundas.
*Psicólogo Clínico