O futuro começa agora – da pandemia à utopia é o título do seu último livro, publicado em Novembro do ano passado e que analisa os impactos da pandemia em várias vertentes. O que é que a obra nos diz?
A primeira coisa é que, ao contrário do que se pensou no início, que seria uma crise sanitária passageira, esta pandemia veio para ficar. Em Novembro já dizia que iríamos entrar num período de pandemia intermitente, que caracterizaria o século XXI. E é por isso que o livro se chama O futuro começa agora. Esta pandemia veio alterar as formas de sociabilidade, as políticas de Estado, e se não se alterarem, então as sociedades irão sofrer ainda mais. Felizmente para o autor, infelizmente para a sociedade, está-se a confirmar o que previa. Estamos num período de pandemia intermitente e assim vamos continuar.
Intermitente porque a intensidade não é sempre igual…
Vamos passar por fases de crise aguda e por fases de crise crónica. Na primeira vamos confinar, usar máscaras na rua, no espaço público, estar em teletrabalho. No período de abrandamento tudo parece que vai voltar ao normal, mas de repente vem outra onda, que pode ser sazonal, sobrepôr-se ou não à gripe. O vírus está relacionado com as mudanças climáticas, com as alterações no clima, que desestabilizaram os habitats dos animais selvagens, entre os quais circulam muitos vírus, que nessas circunstâncias podem entrar em contacto com os seres humanos, que não estão protegidos nem imunes. Acontece isto há muitos séculos. Agora, a diferença é que há vacinas. Outra razão pela qual teremos uma pandemia intermitente é que o mundo não será todo vacinado a curto prazo. Isso é que era necessário e foi isso que a Organização Mundial de Saúde pediu e defendeu. Acontece que as grandes empresas farmacêuticas que produzem as vacinas não querem abrir mão dos direitos de patente, que tornam as vacinas muito mais caras, por um lado, e não permitem que elas sejam produzidas em África ou na Ásia, por outro.
No livro analisa também as desigualdades sociais…
Outra ideia do livro é que a pandemia veio agravar as desigualdades sociais. Quem morreu mais, foi quem já tinha sofrido de desigualdade, quer devido a pouco atendimento na saúde, quer por não ter grandes condições sanitárias ou de habitação, por falta de condições para teletrabalho e muitas outras razões que fizeram com que essas pessoas ficassem muito mais expostas. No livro mostro já estatísticas, que depois se agravaram. Por exemplo, os Estados Unidos, o país mais desenvolvido, foi dos mais atingidos e que pior se defendeu desta pandemia. É na população pobre negra que há a maioria das mortes, porque era a que já estava numa linha de maior precariedade.
No livro afirma igualmente que do ponto de vista capitalista uma pandemia é um negócio…
E foi. Veja-se o número de bilionários, que aumentou em todo o mundo ao longo da pandemia. E aumentou tanto mais quanto pior foi a protecção dos cidadãos durante a crise. O Brasil, por exemplo, teve um aumento grande de bilionários, os Estados Unidos também. Foi realmente um negócio. Até porque algumas áreas, sobretudo as ligadas ao mundo digital, tiveram um desenvolvimento extraordinário. O Zoom foi inventado por um jovem da Califórnia para permitir que os CEO das grandes empresas em diferentes países pudessem reunir. Com a pandemia, de repente, todo o mundo quis ligar-se por Zoom. Para isso, e para um uso continuado e de qualidade, tem de se pagar uma licença. Esse jovem transformou-se rapidamente num dos homens mais ricos do mundo. O capitalismo obviamente ganhou em algumas áreas, noutras não. Mas para muitos foi um negócio. Vejam-se as vacinas. Hoje, na literatura mundial, já designamos as vacinas como o novo ouro líquido. O ouro negro do século XX foi o petróleo, o ouro líquido do século XXI serão as vacinas. É por isso que as empresas não querem abrir mão das patentes.
[LER_MAIS] Uma empresa que fabrica uma das vacinas contra a Covid passou de prejuízos para lucros milionários…
Sim. A Oxfam, grande organização inglesa sobre as questões da desigualdade no mundo, muito respeitada, mostrou que com os bónus que os CEO destas grandes farmacêuticas ganham, em dez meses poderíamos ter vacinado todo o mundo. Veja-se quanto recebem de bónus devido aos grandes lucros que as empresas estão a ter com as vacinas.
Mas as farmacêuticas têm de investir no desenvolvimento das vacinas…
As empresas dizem isso, mas não é verdade. Mais de 80% do financiamento para as vacinas foi público. No caso da União Europeia claramente. Praticamente financiou todo o trabalho da AstraZeneca. Houve muito financiamento público, e isso é que choca. Houve financiamento publico, mas os lucros são privados. Não estou a dizer, e ninguém tem defendido, que haja uma eliminação das patentes. O que se tem defendido é uma suspensão temporária. Que por exemplo durante dois anos se suspendam as patentes, como se fez com os chamados retrovirais da Sida, para permitir que a África do Sul e a Índia pudessem produzir esses produtos a uma fracção do preço e a partir daí o problema da Sida resolveu-se.
Com a pandemia foram adoptadas pelos Governos medidas de vigilância e de controlo da população, em alguns países muito contestadas. Esta tendência de controlo que veio para ficar?
Há muito populismo nestas questões, mesmo na Europa. Temos de distinguir dois cenários. Um de alguma limitação da liberdade por razões de saúde pública, para protecção da comunidade. Outro é o aproveitamento que alguns Estados fizeram destas medidas para exercer controlo sobre as populações para além do que é necessário. Sabemos muito bem que, por exemplo, na Hungria Viktor Orbán promulgou poderes excepcionais de controlo dos cidadãos e da sua privacidade que não têm nada a ver com pandemia e que, como mostro no livro, nem sequer estão limitados pelo período da pandemia. É um Estado autoritário a aproveitar-se da pandemia para controlar os cidadãos. Não penso que seja esse o caso da Alemanha, da França ou da Holanda. Também não foi o caso de Portugal, onde houve aliás muito cuidado nessas questões, nas aplicações que foram criadas. E os portugueses mostraram um comportamento extraordinário nesta pandemia. Tenho sido muitas vezes crítico do nosso País, mas tenho de cumprimentar as autoridades políticas porque não permitiram que a pandemia fosse politizada, como aconteceu nos Estados Unidos, onde tenho vivido metade do ano, pelo que acompanhei muito de perto o que aconteceu. Houve uma politização total. Quem é democrata vacina-se, quem é republicano não se vacina. Em Portugal tivemos um Presidente da República, que é de direita, um primeiro-ministro, que é de esquerda, e Rui Rio, lider do principal partido da oposição, unânimes em que estávamos numa crise sanitária e que precisávamos de estar todos de acordo e todos a uma voz para defender a saúde dos portugueses. Isso foi notável. E é por isso que temos estes índices de vacinação.
Vivendo há mais de 35 anos metade do seu tempo nos Estados Unidos conhece bem a realidade do difícil acesso aos serviços de saúde. O Serviço Nacional de Saúde português tem sido apontado como um dos melhores do mundo, mas a pandemia veio colocar a nu muitas das suas fragilidades…
Fragilidades que foram criadas. Tivemos um dos melhores SNS do Mundo, hoje já não o será, apesar de ter grande reputação. É um sistema que está a ser sobrecarregado devido às transferências financeiras feitas para o sector privado. Deixámos, por exemplo, que o privado dominasse os meios de diagnóstico e hoje há custos enormes no público para pagar isso. Seria mais eficiente se fossem feitos no serviço público. Foi eliminada a exclusividade no SNS, um erro de todo o tamanho. A partir daí muitos médicos passaram a dividir o seu tempo e não se fortaleceu como se devia o Serviço Nacional de Saúde. Daí que haja agora politicamente, por aquilo que ouço, uma demanda de que volte a haver exclusividade de funções. O Serviço Nacional de Saúde está a dar sinais de alguma saturação e de incapacidade, porque a concorrência do privado é muito grande e, pura e simplesmente, não há atractivos para que os bons médicos fiquem no SNS. Podemos correr o risco de ter um Serviço Nacional de Saúde para pobres e um sistema privado de seguros para classes médias e para ricos. Seria o fim da saúde pública em Portugal.
Há o risco de chegarmos a um cenário como o dos Estados Unidos, onde só quem tem dinheiro consegue ter acesso à saúde…
Não tenho dúvidas. [Nos Estados Unidos] Quando o meu médico me receita um medicamento, o farmacêutico tem de perguntar à companhia de seguros se ele está incluído na apólice. Se não estiver, não mo pode vender. Por enquanto o sistema não é assim tão gravoso em Portugal, mas por uma razão simples: as companhias de seguros ainda não dominam o mercado. Vejo isto com extrema preocupação e sou um grande defensor do Serviço Nacional de Saúde. É muito mau aquilo a que estamos a assistir em Portugal, que é uma transferência grande de médicos e de enfermeiros, em condições de concorrência desleal, e também de transferências financeiras para os meios de diagnóstico. Isto é muito perigoso e devia ser terminado o quanto antes.
A pandemia fez-nos perceber que podemos substituir as reuniões e as aulas presenciais por outras online. Caminhamos para uma sociedade virtual?
O movimento para uma sociedade virtual estava já em curso e vinha sendo anunciado com muita força com a chamada quarta revolução industrial, que é a da inteligência artificial, da robótica, da automação, da internet das coisas, da impressão 3D. Obviamente que a pandemia veio acelerar o processo, mas ao mesmo tempo veio também mostrar que o trabalho presencial nunca vai acabar. Vai haver uma alteração grande no mercado de trabalho, não se sabe ainda quando, que vai atingir alguns sectores industriais de forma muito grave em alguns países. Ao nível da educação e das universidades, a questão é outra. A educação não pode de maneira nenhuma ser feita online. Pode ter a dimensão que tem tido de ensino à distância, mas educação não é apenas ensinar e aprender. É também socializar as crianças e os jovens. Têm de estar na escola. Os jovens aprendem mais uns com os outros do que com os professores. Temos hoje muita doença mental entre os jovens porque estão mais isolados, perderam as suas companhias e isso é extremamente danoso para a sua saúde mental.
Entre o ensino e a investigação
Boaventura de Sousa Santos nasceu em Coimbra há 80 anos e é um dos mais destacados intelectuais portugueses. Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Universidade de Wisconsin-Madison, cidade americana onde antes da pandemia passava metade do ano. Foi também Global Legal Scholar da Universidade de Warwick e Professor Visitante do Birkbeck College da Universidade de Londres. É Director Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. De 2011 a 2016, dirigiu o projecto de investigação ALICE – Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do mundo, um projecto financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC), um dos mais prestigiados e competitivos financiamentos internacionais para a investigação científica de excelência em espaço europeu. Tem escrito e publicado extensivamente nas áreas de sociologia do direito, sociologia política, epistemologia, estudos pós-coloniais, e sobre os temas dos movimentos sociais, globalização, democracia participativa, reforma do Estado, direitos humanos, com trabalho de campo realizado em Portugal, Brasil, Colômbia, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Bolívia e Equador e os seus trabalhos encontram-se traduzidos em espanhol, inglês, italiano, francês, alemão, chinês, romeno, dinamarquês e polaco.