As mulheres são cada vez mais nos quartéis de bombeiros voluntários. Mas, por muita igualdade de género que se exija, as características biológicas do sexo feminino e masculino são obrigatoriamente diferentes. Nada disso impede, porém, que as bombeiras possam fazer um trabalho tão bom e, em algumas situações, até melhor do que os homens.
“Somos todos pessoas, há limitações em ambos os lados, mas nunca nos sentimos inferiorizadas ou menosprezadas”, assumem algumas das operacionais dos Bombeiros Voluntários da Maceira com quem o JORNAL DE LEIRIA conversou, que admitem, contudo, terem de provar o seu valor.
Na corporação da Maceira cerca de 40% dos operacionais são mulheres e nos cursos de promoção elas conseguem, muitas vezes, ficar em primeiro lugar. Consideram que trazem humanidade à corporação, apesar da frieza aplicada no teatro de operações. “Temos um lado humano e uma capacidade de empatia que, por muito que eles tentem, nem sempre conseguem ter”.
A mesma opinião tem o comandante, António Faustino, que destaca precisamente a “humanidade” que entrou no quartel. O comandante dos Voluntários da Nazaré, Mário Cerol, também concorda que as mulheres “trazem uma sensibilidade” aos quartéis e, “por vezes, outra leitura das situações para a estrutura, própria da sua natureza intrínseca ou de quem é mãe, filha ou esposa”.
Esta é uma mais-valia, por exemplo, na intervenção em casos de violência doméstica. “Quando é a bombeira a primeira a falar, a situação tende a acalmar um pouco. Às vezes, conquistamos a vítima só com um olhar”, diz Jéssica Pereira.
Têm idades entre os 19 e os 56 anos e profissões distintas. São enfermeiras, assistentes sociais, professoras e até profissionais no quartel. A família resignou-se à sua escolha. Combateram as chamas em Pedrógão Grande e no Pinhal de Leiria. Saem para acidentes rodoviários e industriais e intervêm na multiplicidade de casos de saúde quando o INEM é chamado. É a ida para o teatro de operações de um incêndio que dá adrenalina a muitas delas.
Sara Dinis comprovou-o, quando estava a conversar com o JORNAL DE LEIRIA e a sirene tocou para ir para um fogo. Levantou-se e já equipada voltou para trás. O segundo comandante, João Nuno, pediu-lhe que ficasse para a entrevista. “Eu queria ir”, afirmou ao juntar-se ao grupo.
Histórias de amor
Ana Rosa é bombeira há 15 anos. Estava prestes a atingir a maioridade quando decidiu ingressar nos bombeiros. “Foi a curiosidade que me trouxe e gostava de combater incêndios florestais”, conta. No ataque aos fogos, a força física é um dos ingredientes necessários, mas Ana, tal como as colegas, nunca se sentiu de parte e garante que combatem as chamas da mesma forma que qualquer homem.
Já apanhou alguns sustos, como um despiste numa antiga berliet, que sacudiu a equipa que seguia no veículo. Mas nada disso a fez desistir.
Marília Simões é uma das bombeiras mais antigas na corporação. Já viveu histórias de horror e de amor. Recorda um ano em que assistiu a quatro paragens cardio-respiratórias. Numa situação tratava-se de uma criança de 6 anos, que não conseguiu reverter. Não foi fácil digerir essa morte. “Procurei ajuda para dissolver o sentimento de culpa. Durante muito tempo coloquei em causa se era para isto que estava destinada”, conta.
Mas também recorda histórias de amor, como uma doente terminal, cuja filha pediu para acompanhar a mãe na ambulância. “Quando o final estava próximo a senhora olhou para mim, como se agradecesse o facto de ter deixado a filha acompanhá-la na ambulância, algo que não costumamos permitir”, confessa Marília, ao revelar ainda o carinho do marido de uma idosa que insistiu com a mulher para comer algo antes de ir para o hospital. “Já a senhora estava na maca e ele ainda lhe estava a dar comida. Foi um acto de puro amor.”
Histórias têm muitas. Algumas incomodam a tal ponto que preferem não partilhar. Pedrógão Grande deixou marcas profundas em homens e mulheres que passaram por aquele que foi o incêndio mais dramático dos últimos tempos.
Cátia Pinheiro prefere guardar para si essas feridas. O incêndio no Pinhal de Leiria marcou Ana Rosa. “Cresci e vivi toda a minha infância na Marinha Grande e todas as actividades da escola eram no Pinhal de Leiria. Vi toda a minha história ali a arder”, relata. Há também situações caricatas que as fazem largar gargalhadas, como o assalto a uma caixa multibanco a poucos metros do quartel.
“Estávamos a descansar e de repente ouvimos uma explosão. Levantámo-nos a correr para ver o que era. Quando chegámos vimos os assaltantes num carro a fugir com a caixa multibanco que tinham arrancado”, relata Marília. Na Maceira as camaratas são individuais para garantir o melhor descanso, mas elas garantem que não têm problema em trocar a roupa de intervenção em frente dos colegas sempre que toca a sirene. Ferido com preconceito Na Maceira não há protecção especial para as mulheres. Os cuidados que têm uns com os outros são aqueles que são exigidos a uma equipa que está num teatro de operações complicado e cuja confiança é primordial.
No entanto, quando existem necessidades fisiológicas, elas são mais difíceis para as mulheres, ou quando estão menstruadas. São até os colegas que colaboram para que tenham as condições, no meio das chamas. “Por vezes, até são eles que nos dizem para ir à casa de banho ou arranjam um local seguro no meio do terreno”, afirma Sara Dinis, que aproveita o momento para pedir ao Governo kits dedicados à higiene feminina. Preconceito sentem sobretudo em algumas ocorrências. Quando vão socorrer alguém e a pessoa questiona se é a bombeira mulher que o vai socorrer. “Fomos activados para um acidente de trabalho e o senhor ficou muito indignado por ser eu a socorrê-lo. O meu colega disse-lhe que eu era a pessoa mais capacitada naquele momento para o ajudar”, conta Marília Simões, considerada a mãe de todas.
Mudanças ao longo dos anos Cláudia Murtinho foi bombeira num tempo em que os quartéis eram dominados por homens. “Entrei em 1995 para os Voluntários de Ansião e só havia uma bombeira. Fiz carreira até bombeira de primeira”, revela a actual assistente técnica no Comando sub-regional de Emergência e Protecção Civil de Leiria.
Admitindo que a única dificuldade que enfrentou foi o desencarceramento, pois não tinha força suficiente para manobrar os equipamentos, Cláudia Murtinho realça a importância do sexo feminino na abordagem às vítimas.
“Fazemos tudo como eles, com as limitações que são inerentes a cada ser humano, pois ninguém é igual. Acabamos por ser mais descontraídas em algumas situações e as vítimas, por vezes, sentem-se mais tranquilas perante uma mulher”, assume.
Durante cerca de 15 anos, o tempo que durou a sua aventura nos voluntários de Ansião, Cláudia passou por momentos felizes, mas também duros e “na época não havia qualquer apoio psicológico”, “nem comida nos incêndios”.
“Colocávamos uma carapaça para não sofrer e ganhar frieza”, relata, ao recordar o salvamento de um bebé, que foi retirado de um poço já sem vida. Ainda novata, “quase” fez um parto. “O bebé chegou ao hospital com a cabeça de fora. Confesso que fiquei assustada”, acrescenta, lembrando ainda a intervenção junto de um senhor armado, que convenceu a acompanhá-la.
Num dos fogos florestais, Cláudia e os restantes operacionais estiveram horas sem comer. Uma cidadã ofereceu-lhes um pão e queijo. O comandante da altura fez uma fogueira, torrou o pão e dividiu por todos.
“Aprendi a respeitar e a ser respeitada. Os ensinamentos ajudaram-me no meu trabalho actual.”
Sangue novo
Ana Gil, 23 anos, está no terceiro ano de Enfermagem e iniciou no passado fim-de-semana a recruta nos Bombeiros Voluntários da Ortigosa. “Apesar de ser ainda estudante, posso fazer mais para ajudar os outros. Ir para os bombeiros é como uma missão humanitária e ter a oportunidade de contribuir para minimizar o sofrimento e problemas do outro”, afirma, reconhecendo que é o serviço de INEM que mais a cativa, mas não terá problemas em ir combater incêndios.
“Esta recruta tem um número equilibrado de homens e mulheres e não há tratamento diferenciado. Somos tratados como pessoas, como deve ser.”
Pombal com nova camarata
O aumento de mulheres nos Bombeiros Voluntários de Pombal levou a direcção a colocar nas suas prioridades o alargamento da camarata feminina nas próximas obras.
Sérgio Gomes, presidente da Associação Humanitária de Pombal, afirma que o número de operacionais do sexo feminino tem vindo a crescer, mas não é o suficiente para superar as necessidades do concelho.”
No entanto, já há várias mulheres em lugares de chefia e a integrarem as equipas de intervenção permanente. “Na nossa corporação ninguém é beneficiado nem prejudicado. O salário é igual, independentemente do género. As mulheres trazem uma visão diferente e uma capacidade de análise distinta dos homens. É uma mais-valia, até porque são, por vezes, mais ponderadas”, assume Sérgio Gomes, que refere ter 28 voluntárias, em 150 bombeiros. Nos Bombeiros Voluntários da Nazaré, 32% do efectivo do corpo de bombeiros é feminino, num total de 21 mulheres.
Mário Cerol afirma que “não existem diferenças” entre operacionais. “As missões e as ordens são iguais para todos. Pode é existir, por vezes, um maior cuidado para com as mulheres.”