Há quatro anos, seria impossível escrever este texto. Há quatro anos, Carol estava em Fortaleza, no Brasil brasileiro, em vez de sentada na esplanada do Sport Operário, na Marinha Grande. Hoje é possível. Tudo parece possível na doçura bossanova dos 20 anos de Carollyne Barreira, que acaba de se apresentar em concerto pela primeira vez, no contexto do festival A Porta. Estreia entre quatro paredes, para um público restrito, durante o jantar temático francês, no momento em que surgem as primeiras canções com assinatura na plataforma digital Soundcloud. No mundo sem fronteiras da internet, o mundo inteiro já pode ouvir Nosso Carnaval e Choro do Lamento. Só voz e violão, para "fazer da dor uma coisa bonita".
Este Brasil acontece na Marinha Grande, onde Carol mora com a família. Dá para imaginar o choque, entre o Ceará tropical e a cidade indústria. Em Nosso Carnaval, ela canta a distância entre dois mundos. "Você me levou aliviado, por onde nunca foi apaixonado, e o sentimento que passou foi perdoado". E depois, como quem insiste na mesma órbita celestial: "Passou o carnaval desse serrado, com tudo o que sobrou do teu reinado. Saí, te vi ali, deitado. Me diz, amor. Eu vou te ver de novo? Eu vou ser de novo? Eu vou crer de novo no amor?". Com os acordes de Choro do Lamento, regressa a saudade, mas também a esperança, de um novo dia. "E você vai se acostumar, a todo o samba. E vai querer ficar, amenizar, para quê se lamentar? É domingo e eu vou te chamar, vou colocar nosso João p'ra tocar, e esperar, você aqui chegar".
Carol vem da poesia para o som e quer "que a letra seja o ferro que estrutura tudo". Na esplanada do Sport Operário – está aquele calor equador num dia que começa com chuvada grossa – há uma verdade a que empresta a voz. É o acumular "de sentimentos e de etapas", um elo, um momento de empatia. "A gente junta tudo e joga para fora de uma forma musical bonita. Eu queria muito pegar na dor e fazer da dor uma coisa bonita". Porque "as pessoas se unem mais, têm um espírito mais de fraternidade, quando elas identificam que também a outra pessoa está sofrendo". Então, conclui, "essa coisa da música se resume a isso: é uma troca de dor". Sem máscaras, só coragem. "É o que eu tenho mais medo de me tornar, uma coisa que não é transparente".
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Existe um romance finito nesta história, que funcionou como protecção na chegada à Europa. "Aí quando eu terminei esse namoro foi que eu percebi que eu estava mesmo sozinha, mas quando eu percebi que estava sozinha foi quando eu abrangi mais de mim e comecei a chegar mais às pessoas". Ou seja, o princípio para transformar Carollyne Barreira em Carol, o horizonte de eventos em que a guitarra começa a libertar canções com vida própria. "Precisamente, porque na verdade os meus sambinhas, como eu gosto de chamar, são sambinhas de amores perdidos, a maioria deles. Foi uma coisa, eu reconheço agora, essencial para a minha libertação pessoal – e musical, também".
Nosso Carnaval e os outros três temas gravados e mixados por Carlos Martins, do projecto Caruma, têm selo de uma nova editora com sede em Leiria, a Duro de Ouvido, de Sal Nunkachov. "É tudo muito novo, muito bruto", explica a compositora brasileira, mas há um fio condutor que já se identifica estrada fora. "Consigo ver uns violinos, umas coisas de sopro, talvez uma bateria de jazz bem leve". Algo que mantenha a lírica no centro do palco, que respeite a "mistura de bossanova com samba", mas que vá mais além, talvez até aonde a electrónica se torna jurisdição. "Eu me vejo buscando bastantes estilos diferentes". Tudo é possível. Ela diz e a gente acredita.
Só dá Carol nas músicas de Carol. "Quando eu preciso dizer uma coisa e sei que vou me arrepender depois de ter dito, então eu faço uma música e fico mais relaxada". Mas nada de egoísta ou narcisista. "Para mim o mais importante é me identificar na música que faço e saber que a pessoa que vai ouvir também vai identificar-se. Gosto muito dessa noção de compartilhar". Há influências de Tom Jobim, de Tim Bernardes, de Mallu Magalhães – "As pessoas dizem que a minha voz parece um pouco com ela, eu não acho, eu acho que ela me influencia bastante, pelo menos o último álbum" – e da poesia de Pablo Neruda, dos poemas escritos na adolescência, dos tempos numa academia de letras de Fortaleza, do Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Desde criança rodeada pela música, pai músico, toda a semana um instrumento novo em casa – "meu pai brinca que quando eu tinha uns seis ou sete anos conseguia tocar o Brasileirinho no cavaquinho" – e só agora, de há um ano a esta parte, a vontade de sentar-se à guitarra e compor. Carollyne Barreira está a terminar o curso de técnica de turismo, com estágio a decorrer na Casa da Cultura Teatro Stephens, depois do Verão segue para o Porto, a fim de estudar História da Arte. Pelo meio, há concertos marcados: em Lisboa e no Brasil.