Ana Cruz e Maria de Betânia assinam a colecção de esculturas encomendada pela Fox portuguesa, através da produtora Ghost, para o fim da série The Walking Dead, um relicário que no último fim-de-semana esteve em exposição na Heroes Dutch Comic Con de Utrecht, na Holanda.
Naturais do norte de Portugal, com rotina profissional em Lisboa, escolheram Caldas da Rainha para instalarem o ateliê Ana + Betânia, onde criam peças únicas de cariz artístico. Com obras que, ocasionalmente, se inspiram na cerâmica popular, exploram temas e conceitos contemporâneos, muitas vezes relacionados com “o corpo” e “o sentir feminino”, a dissecar a mulher como geradora de vida associada à Mãe Natureza, “fundamental para a regeneração da Humanidade”.
O estúdio de Ana Cruz e Maria de Betânia descobre-se na página 18 do Roteiro dos Ceramistas de Caldas da Rainha, um livro lançado oficialmente pelo município no início de Fevereiro, da autoria de Isabel Castanheira (coordenação, textos e edição) e Carlos Barroso (fotografia). A dupla vinda de Lisboa garante que “é uma mais-valia” integrar a cidade onde “a tradição perdura” e fala de “um novo olhar sobre a cerâmica” por parte do mercado da arte, agora mais disponível para valorizar a técnica, o tempo lento e a produção manual. Para duas pessoas que “sempre tiveram o ímpeto de criar e de transformar ideias em imagens”, explicam ao JORNAL DE LEIRIA, a cerâmica proporciona “uma ligação directa entre o pensar e o fazer”.
Na página 72 do Roteiro, Isabel Claro e o ateliê Bolota representam outro grupo de artistas, os naturais de Caldas da Rainha, herdeiros de um conhecimento acumulado por gerações e gerações. Hoje, acredita que “a cerâmica está na moda” e já não é “um parente pobre”, como foi. O interesse de nacionais e estrangeiros traz dinâmica a um ofício que também beneficia da afirmação do País enquanto destino turístico e que tanto atrai o consumidor comum como o gosto sofisticado, do segmento artístico ao utilitário.
“Há negócio. Normalmente, não tenho dificuldade em vender as peças que faço”. Há mais de 35 anos na actividade, Isabel Claro elogia o contributo dos novos protagonistas, “cheios de ideias”, incluindo antigos alunos da Escola Superior de Artes e Design do Politécnico de Leiria, que aproveitam “as raízes portuguesas” e “a história de Caldas da Rainha” e produzem objectos com identidade.
Para a proprietária do ateliê Bolota, o que a cerâmica significa está no título de um documentário filmado pelo filho: Coração nas Mãos. “Representa muito de mim, não foi só uma escolha profissional”.
No livro editado pela Cidade Criativa da Unesco na área do Artesanato e Artes Populares, Carlos Barroso não é apenas o homem atrás da câmara fotográfica e na página 38 posa diante da objectiva, na sua própria oficina. Filho e neto de oleiros, zangou-se com o barro depois da doença do pai na década de 90 e só fez as pazes em 2012. “Um luto muito prolongado”, admite. A infância em volta da roda e nas feiras do parque D. Carlos I está fixada numa fotografia em que aparece ele, o pai e o então presidente da república, Ramalho Eanes. Agora, tem outra vez uma banca, na Praça da Fruta.
Depois de criar a Rainha D. Leonor que se encontra na sede da União de Freguesias de Nossa Senhora do Pópulo, Coto e São Gregório, Carlos Barroso lançou uma linha de souvenirs que aproveita a famosa marotice de Caldas da Rainha. “Falos sorridentes, com olhos, boca e nariz. São divertidos, são simpáticos”. No entanto, não esquece os novos ceramistas que surgiram nos últimos anos, capazes de “acrescentar valor”. Ou seja, “há mais vida além do falo, da mesma forma que há mais vida além da Bordallo Pinheiro”.
Segundo Pedro Paramos, director de serviços de formação do Cencal – Centro de Formação Profissional para a Indústria Cerâmica, nos últimos anos “Caldas da Rainha foi capaz de atrair um conjunto significativo de ceramistas com muita qualidade, que se têm afirmado no mercado nacional e internacional, dando continuidade à tradição cerâmica da cidade”.
O próprio Cencal, por onde passaram “uma parte significativa dos actuais ceramistas da região”, evoluiu “para um perfil profissional mais contemporâneo e europeu”, o técnico de cerâmica criativa, “integrando a componente técnica com a de design”.
Em 2021, o Cencal formou 544 pessoas, provenientes de 72 empresas, em 47 acções de formação de cerâmica e vidro.
“Caldas da Rainha será nos dias de hoje um dos principais pólos de cerâmica criativa do País. É pois com muita satisfação que vemos que toda uma tradição cerâmica foi capaz de se renovar e de ter continuidade, nomeadamente com as gerações mais novas”, refere Pedro Paramos. “Há uma dinâmic a muito grande e constatamos que todos os anos surgem novos profissionais com ideias inovadoras, nomeadamente em termos de design do produto, muitos deles formados no Cencal e na ESAD”.
No Roteiro dos Ceramistas editado pelo Município de Caldas da Rainha estão identificados 87 artistas, com idades entre os 27 e os 84 anos.