“Foi uma chamada para o número errado que despoletou tudo, o telefone a tocar três vezes no silêncio da noite, e a voz do outro lado da linha a perguntar por alguém que não era ele”, pode ler-se, na tradução do inglês por Alberto Gomes, durante o arranque de Cidade de Vidro, de Paul Auster, que abre A Trilogia de Nova Iorque.
“É um dos livros da minha vida e este projecto vai ser um dos mais ambiciosos”, comenta Daniel Bernardes, agora que estão concluídas as gravações de City of Glass, novo disco, inspirado no texto, com o mesmo título, publicado em 1985 pelo escritor norte-americano.
“Não é todos os dias que se grava com um coro de quase trinta pessoas. E, depois, esta dimensão multidisciplinar”, explica ao JORNAL DE LEIRIA. “O processo de criação foi um bocadinho semelhante ao do Vignette, portanto, esta ideia de ter contacto com um objecto exterior que espoleta a composição musical”, compara o compositor e pianista de Alcobaça. “No caso do Vignette [álbum de 2022] foi ver o filme e ir para o piano. Neste caso, foi analisar a narrativa, definir 12 momentos chave, que são os 12 temas que compõem o disco, e os títulos são frases ou expressões que o Auster utiliza”.
As diferentes camadas de Cidade de Vidro exploram perspectiva que destroem os limites da identidade, da realidade e da ficção. “Esta história é de facto uma espiral fantástica de coisas que vêm de universos muito diferentes e algo que gosto na minha música é não se conseguir rotular um género”, refere Daniel Bernardes.
No primeiro andamento de A Trilogia de Nova Iorque, o protagonista, Daniel, de apelido Quinn, é um escritor de policiais que adopta o nome Paulo Auster para trabalhar como detective privado. “De forma brilhante e surpreendente deixa de ser um policial para ser sobre a desintegracão daquele homem e de como a pouco e pouco ele fruto da obsessão se vai autodestruindo e afastando da sociedade e dele próprio”. Também City of Glass é um disco “muito híbrido”, segundo o director da Leiria Cidade Criativa da Música Unesco. “Momentos líricos e de música coral” surgem na mesma convocatória ocupada por registos “de jazz”, com o plano de intimidade a espreguiçar-se entre o ambiente litúrgico e a aventura nova-iorquina.
Durante dois anos, Daniel Bernardes trabalhou a partir do livro de Paul Auster (e em paralelo inspirou-se na novela gráfica em que colaboram David Mazzucchelli e Paul Karasik) para criar uma partitura que considera “muito especial” – “Tem essa ligação emocional a um livro que foi muito marcante para mim”, aponta.
Gravado no mês de Outubro, com direcção musical de Pedro Moreira, o álbum conta com o Coro Ricercare dirigido pelo maestro Pedro Teixeira e um trio de jazz em que o pianista de Alcobaça dialoga com António Quintino (contrabaixo) e Joel Silva (bateria, antigo aluno do Orfeão de Leiria).
Poucos ensaios, a permitir fixar em estúdio a respiração de cada instante. “A improvisação é incortornável para mim”, realça Daniel Bernardes. “É o único elemento indispensável”. Como “uma fotografia sem maquilhagem” e em “ligação directa ao subconsciente”, absorve “tudo aquilo que [o músico] sente, tudo aquilo que pensa, tudo aquilo que está a estudar naquele momento e que aparece de forma muito espontânea”. A “liberdade estética” é maior e a música torna-se “mais autêntica”.
O lançamento de City of Glass deverá ocorrer na Primavera de 2024.