Meu Caro Zé,
Três notícias do fim de semana, aparentemente sem qualquer ligação, deram-me que pensar, designadamente porque mostram que há uma dessincronização entre o pensamento e a vivência social hoje em dia (conforme mostra brilhantemente o filósofo alemão Harmut Rosa no seu livro Accélération – Une critique social du temps (tradução francesa), sem embargo de o melhor de cada um de nós vir, de vez em quando, ao de cima, superando essa dessincronização.
As duas primeiras, em particular, têm a ver com a discriminação permanente que grassa no seio da sociedade, sem dela nos darmos conta, incorporando a utilização de recursos públicos para benefício privado ou de concentração do poder público ou privado. Assim, a primeira das notícias tem a ver com o “salvamento” de montanhistas e caminhantes na Serra do Gerês que envolveram 70 bombeiros e 22 viaturas!
Foi um acto heróico e de grande sucesso, badalado por todos os lados! Claro que sim! Ainda bem que essas vidas foram salvas! Uma vida é uma vida sempre! Mas, atenção! Não havia claros avisos da meteorologia, de grande instabilidade do tempo? é legítimo que os recursos que todos pagamos estejam disponíveis para atender as aventuras que, normalmente, os mais abastados se permitem correr? Quando há tantas restrições orçamentais, como é que os recursos públicos são usados?
Não estou a dizer, atenção, que se não socorressem as pessoas em perigo, mas exige-se uma reflexão e uma ponderação sobre quem, em última análise, usufrui dos recursos públicos que todos suportamos. E essa reflexão está por fazer…
A segunda notícia vem do reino do futebol e é construída por mim. Na Liga de Honra, neste fim de semana, todas as equipas B de clubes que militam na Liga NOS, incluindo aqui os “B” do Porto, Sporting e Benfica (por ordem de classificação, nessa Liga de Honra) foram claramente derrotados por equipas de clubes “menores” de várias zonas do país (de Trás-os- Montes ao Algarve até aos Açores). E, no entanto, essas equipas “B” dos “grandes” têm custos que os outros não têm, absorvem tantas vezes as “promessas” dos outros clubes e concentram em si todo o “poder” futebolístico, com o beneplácito e o patrocínio de todos os meios de comunicação, dos apoios das empresas e até dos cidadãos que querem sempre ser do “clube” que ganha. Leiria, creio, sabe bem disso! Não será que todos falamos contra os “monopólios” e somos quem, alegremente, os sustentamos? A terceira é a “pedra no charco”.
O motard português Paulo Gonçalves, liderava o Rally Dakar quando encontrou um outro piloto que sofreu um desastre. Indiferente ao tempo perdido (e o avanço para os seguidores na classificação era curto) largou a sua moto e socorreu, de imediato, o colega, acompanhando-o até à chegada do socorro médico. O mais importante é ter afirmado que nem por um momento hesitou sobre o que havia de fazer. Bravo! E, no mesmo tom, a organização decidiu creditá-lo com um tempo igual ao que ele perdeu no socorro ao colega. Um prémio, sim, verdadeiro, porque não conquistado com a mira de o obter. Afinal, a diferença entre “prémio” e “incentivo” que também merece uma forte reflexão na aplicação dos dinheiros públicos. Coisas miúdas, mas que fazem pensar.
Até sempre,
*Professor universitário