Antes de os 5ª Punkada irem a palco no próximo sábado, no Teatro José Lúcio da Silva, na abertura do festival Clap Your Hands, o público vai assistir à estreia em Leiria do documentário Com Amor, Medo, que acompanha a banda na digressão de 2023 através da República Checa, Hungria, Eslovénia e Luxemburgo.
Exibido pela primeira vez no mês de Dezembro, em Coimbra, no Convento de São Francisco, o filme assinado pelo Casota Colective questiona directamente a relação entre arte, entretenimento e participação. Procura, antes de tudo o resto, “perceber o que é ser um artista com deficiência”, explica o realizador Telmo Soares. “Os obstáculos e as dificuldades” sentidas por quem anda na estrada, que são, ainda, quase intransponíveis.
Com 30 anos de carreira, os 5ª Punkada sabem, provavelmente melhor do que ninguém, o que é encontrar caminhos que parecem ruas sem saída. Fátima Pinto, Jorge Maleiro, Miguel Duarte e Fausto Sousa (o único que está no grupo desde a fundação) são utentes da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra, preparam o segundo disco, cujo single de avanço é “Diante de Mim”, já têm um álbum editado pela Omnichord – Somos Punks ou Não?, de 2021, com produção de Rui Gaspar – e somam presenças em festivais como o Paredes de Coura, o MIL e o Bons Sons. No entanto, nem todas as noites são de triunfo – já houve espectáculos cancelados por falta de condições de acessibilidade nos equipamentos culturais – e mesmo algumas vitórias requerem compromisso e imaginação, como no estádio de Coimbra, no momento para a história com os Coldplay, com quem cantaram “Metade de Mim” perante 50 mil pessoas, o que obrigou a uma solução de recurso para Fátima Pinto e Fausto Sousa (ambos em cadeira de rodas) poderem subir ao palco.
A partir da sala de ensaios na Quinta da Conraria, com o musicoterapeuta Paulo Jacob, os 5ª Punkada “mostram-nos que mais do que integração, é possível a verdadeira participação social e artística, e que através da música também se iniciam revoluções”, lê-se na deliberação que atribuiu à Ccer Mais (cooperativa com sede em Leiria) o Prémio Acesso Cultura de 2023 pelo projecto com os 5ª Punkada em que também colaboram os músicos Victor Torpedo e Surma.
“O facto de esta banda ser formada e liderada por pessoas com deficiência intelectual e paralisia cerebral”, argumentam os elementos do júri, esclarece “rapidamente o quanto são valiosos e essenciais, por mostrarem também o seu alto valor para a representação das pessoas com deficiência em lugares de liderança e participação artística”.
Exemplo de coragem
No documentário do Casota Collective que vai ocupar o ecrã do Teatro José Lúcio da Silva este fim-de-semana, o espectador é confrontado com uma “perspectiva intimista” dos 5ª Punkada, que surgem, em “concertos e viagens”, como artistas de pleno direito a percorrer salas de espectáculos e teatros da República Checa, Hungria, Eslovénia e Luxemburgo, durante dez dias, em Setembro.
Pelo meio, há testemunhos de outros artistas com deficiência e de pessoas ligadas a associações e projectos de inclusão.
A conclusão de Telmo Soares é que “a maioria da população ainda não está suficientemente receptiva e informada para abordar este tema de forma séria e objectiva”.
“A partir do momento em que a banda tem elementos com dificuldades de mobilidade, este desafio ganha uma dimensão colossal. Todas as logísticas de deslocações, estadias, refeições, espaços de concertos, tornam-se obstáculos ainda maiores que o habitual. É preciso muita habilidade de quem faz a produção e muita coragem e persistência por parte dos músicos. E nesse aspecto os 5ª Punkada foram incansáveis”, comenta o realizador. “São músicos extremamente destemidos e amam o que fazem”, prontos para “mudar o mundo à sua maneira”. Oferecem “um exemplo de perseverança para outros artistas com deficiência e uma chapada de luva branca para aqueles que insistem em criar barreiras e entraves à sua participação nas artes”.
“Um sonho realizado”
E o que significa a acessibilidade plena e inteira nas práticas artísticas para os que não a têm como garantida? Não pode significar nada menos do que a exclusão de qualquer tipo de barreira, acredita Fausto Sousa, o frontman dos 5ª Punkada, numa resposta enviada ao JORNAL DE LEIRIA através do musicoterapeuta Paulo Jacob, numa pausa durante o ensaio da última terça-feira. E o primeiro passo, lembra o guitarrista Jorge Maleiro na mesma mensagem, consiste em assegurar que o palco e a plateia oferecem condições de acolhimento e mobilidade. “Como músicos, temos de mostrar às pessoas que a gente consegue”, assinala. Jorge Maleiro e Fausto Sousa não têm dúvidas de que o percurso com a banda da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra “é um sonho realizado”. Fica a expectativa, deles e do musicoterapeuta Paulo Jacob, que os 5ª Punkada possam ser um modelo para pessoas em situação de deficiência ou incapacidade e contribuam para abrir o espectro do que é ser artista e sentir a arte em cima do palco.
Com Amor, Medo, o documentário, com 23 minutos, segue agora para o circuito dos festivais de cinema. É apoiado pelo programa europeu MusicAIRE no contexto de uma iniciativa que envolve a consultora portuguesa Inova+ e o Conselho Europeu de Música.